terça-feira, 15 de novembro de 2016

A vida na sarjeta - Theodore Dalrymple (2014)

O padrão desastroso das relações humanas que existe na subclasse também tem se tornado comum na escala social mais alta. Com frequência cada vez maior consulto enfermeiras, tradicionalmente e por muito tempo originárias ou pertencentes à respeitável classe média baixa (ao menos, após Florence Nightngale), que têm filhos ilegítimos de homens que, inicialmente, praticaram algum tipo de abuso, e depois as abandonaram. Essa violência e posterior abandono são, em geral, muito previsíveis dados o histórico e a personalidade desses homens, mas as enfermeiras que foram tratadas dessa maneira dizem que se abstiveram de julgar o companheiro porque é errado fazer juízo de valor. Se, contudo, não forem capazes de emitir um juízo sobre o homem com quem viverão e com quem terão filhos, sobre o que emitirão juízos? (p. 23)

Hoje a concepção prevalecente de vício, em geral, é a de uma doença caracterizada por um ímpeto irresistível (mediado neuroquimicamente e hereditário por natureza) para consumir uma droga ou uma substância, ou para se comportar de maneira autodestrutiva ou antissocial. Um viciado não tem culpa e, por seu comportamento ser a manifestação de uma doença, possui tanto conteúdo moral quanto as condições meteorológicas.
O efeito que um ladrão de carros relatou-me foi: o furto compulsivo de automóveis não era somente culpa sua, mas a responsabilidade por impedi-lo de apresentar aquele comportamento, neste caso, era minha, já que eu era o médico que o tratava. E até que a profissão médica encontrasse o equivalente comportamental de um antibiótico no tratamento da pneumonia, ele continuaria a causar um enorme sofrimento e inconveniente para os proprietários de carros e, ainda assim, considerar-se-ia, fundamentalmente, uma pessoa decente. (p. 31)

Os prisioneiros, invariavelmente, descrevem aos médicos e aos psicólogos as dificuldades de infância (que apresentam, na ocasião, como se fossem relíquias de família), os pais violentos ou ausentes, a pobreza e todas as dificuldades e desvantagens que são herança da raça urbana.
A perspectiva desonesta e interesseira fica aparente na postura com que tratam aqueles que acreditam ter-lhe feito mal. Por exemplo, sobre os policiais que supõem (volta e meia, de maneira razoável) que os tenham espancado não dizem: "Pobres policiais! Foram criados em lares autoritários e agora projetam sua raiva em mim, mas, na verdade, ela é dirigida aos pais que os maltrataram". Ao contrário, dizem com força e emoções explosivas: "os imbecis!". Pressupõem que a polícia age por livre-arbítrio para não dizer, por uma vontade malévola. (p. 33)

Os proprietários de estúdios de tatuagem são bastante tatuados, embora alguns deles, em nossas conversas privadas, tenham admitido que não se tatuariam, ao menos não numa extensão tão grande, caso pudessem voltar no tempo. (p. 77)

As tolices dos tolos são as oportunidades dos sábios, é claro. Aprendi pelas Páginas Amarelas que, para cada cinco estúdios de tatuagem, há três clínicas de remoção de tatuagem a laser (foi assim que nosso produto interno bruto cresceu). (p. 79)

Muitas vezes tentei fazer um experimento simples: numa enfermaria repleta de pacientes incapacitados, desliguei a televisão ou as televisões e deixei o recinto por cinco minutos. Infalivelmente, a televisão ou televisões estavam ligadas no momento em que eu retornava, mas quem as ligava de novo, nunca fui capaz de descobrir. Os pacientes não poderiam tê-lo feito, e as enfermeiras negam. É um mistério total, como o Sudário de Turim. As enfermeiras, no entanto, sempre dizem: "os pacientes querem a TV ligada" e continuarão a dizê-lo, muito embora uma votação informal normalmente revele o contrário.
Parece-me improvável prima facie que uma senhora de oitenta anos com hemiplegia do lado direito após um derrame, e com dificuldade de deglutição da própria saliva realmente queira assistir ao Mr. Motivador, um personal trainer fanático, numa roupa colante de lycra de cores fluorescentes, demonstrando, ao som de uma batida de discoteca incessante, os exercícios para o telespectador perder a celulite nas coxas. Há alguém na enfermaria, no entanto (um pós-modernista, talvez), que acredita que um momento sem entretenimento é um momento perdido, e que uma mente não preenchida pela bobagem de outro alguém é um vácuo do tipo que a natureza abomina. (p. 83)

Claramente, algo muito estranho está acontecendo em nossas escolas. Nossas práticas educacionais atuais são tão grotescas que seria uma afronta à pena de Jonathan Swift satirizá-la. Na grande área metropolitana em que trabalho, por exemplo, os professores receberam instruções de que não devem ministrar as tradicionais disciplinas de ortografia e gramática. Dizem que a atenção mesquinha aos detalhes da sintaxe e da ortografia inibe a criatividade da criança e a capacidade de autoexpressão. Além disso, afirmar que existe uma maneira correta de falar e de escrever é favorecer uma espécie de imperialismo cultural burguês; e dizer para a criança que ela fez algo errado é necessariamente conferir-lhe um senso de inferioridade debilitador do qual nunca se recuperará. (p. 94)

Infelizmente, é muito difícil derrubar esses incrementos pedagógicos (ou antipedagógicos) mesmo hoje, quando o governo central percebeu tardiamente as consequências desastrosas. Por quê? Primeiro, os professores e os professores dos professores nas faculdades de Pedagogia estão profundamente imbuídos dessas ideias educacionais que nos fizeram chegar a esse ponto. Segundo, uma enorme burocracia educacional cresceu na Inglaterra (um burocrata por professor, pululando como almirantes nas marinhas sul-americanas), que usa de todos os subterfúgios para evitar a mudança: da falsificação de estatísticas a interpretações errôneas intencionais da política do governo. (p. 97)

A nova ortodoxia para todas as classes é a seguinte: já que nada é melhor e nada é pior, o pior é melhor porque é mais popular. (p. 106)

Se os britânicos aceitassem, contentes, as desigualdades de renda como parte da natureza das coisas, realmente como precondição e consequência de uma sociedade livre, o efeito pernicioso da loteria nacional na moralidade da nação não seria tão grande. Seria apenas um pouco de diversão; mas a maioria dos britânicos equaciona desproporção de rendas com desigualdade e injustiça, e explica o impulso por tal enriquecimento súbito como uma espécie d vingança do pobre contra um sistema que permite a alguns acumularem uma enorme e injusta porção dos bens terrenos pelo talento e trabalho árduo. Ainda assim, há mais júbilo na Grã-Bretanha pela falência de um milionário que ficou rico pelos próprios méritos do que pelo enriquecimento de 99 pobres. (p. 124)

É a mente, e não a sociedade, que forja as algemas que mantêm as pessoas presas aos seus infortúnios. (p. 135)

O surgimento de uma subclasse indiana na Grã-Bretanha é uma questão de importância maior do que os números parecem sugerir. Não é uma resposta quase mecânica às condições econômicas, ao preconceito racial ou a qualquer outra forma de opressão amada pelos engenheiros sociais de esquerda. É a refutação de uma máxima marxista infinitamente perniciosa que tem corrompido a vida intelectual ao afirmar que "não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a consciência". Homens - até mesmo os adolescentes - pensam: e o conteúdo daquilo que pensam determina, em grande parte, o curso de suas vidas. (p. 144)

O pobre, escreveu um bispo alemão do século XVI, é uma mina de ouro; e assim, por sua vez, os moradores de rua. (p. 146)

A falta de um lar não é, ao menos na sociedade de hoje, a instância especial de uma lei, enunciada pela primeira vez por um colega médico britânico, de que a miséria aumenta para satisfazer os meios disponíveis para reduzi-la? E o comportamento antissocial não aumenta na proporção das desculpas criadas pelos intelectuais? (p. 153)

Quando externei minhas opiniões sobre os conjuntos habitacionais britânicos para um arquiteto inglês - a quem, em meu coração, imputava uma parte da culpa coletiva por aquela situação calamitosa - ele imediatamente replicou: "Sim, mas os chiqueiros fazem os porcos ou os porcos fazem os chiqueiros?" (p. 172)

É bem sabido que crianças inteligentes que não são suficientemente instigadas na escola e são obrigadas a repetir as lições que já entenderam só porque outros em sua classe, mais lentos do que elas, não as dominam, muitas vezes ficam inquietas, comportam-se mal e tornam-se até delinquentes; o que é menos percebido é que esse padrão destrutivo persiste igualmente na vida adulta. Os entediados - dentre os quais estão aqueles cujo grau de inteligência é muito incompatível com as exigências do ambiente cultural - frequentemente resolvem o problema ao fomentar crises facilmente evitáveis e totalmente previsíveis na vida pessoal. A mente, assim como a natureza, abomina o vácuo, e se nenhum interesse cativante foi desenvolvido na infância e na adolescência, tal interesse é imediatamente criado com os materiais que tem à disposição. O homem tanto é um animal criador de problemas como é um solucionador de problemas. Uma crise é melhor que o tédio permanente da insignificância. (p. 178)

Com um imenso aparato de Bem-Estar Social, que consome cerca de um quinto da renda nacional, não sobra nada para uma jovem de dezoito anos, como a que se consultou comigo semana passada, que se esforça mui valorosamente para escapar de sua triste experiência pregressa. O pai era um alcoólatra que bateu na mãe da jovem todos os dias da vida de casados, e muitas vezes também batia nos filhos, até que finalmente decidiu que já era o bastante e deixou-os. Infelizmente, o irmão mais novo de minha paciente assumiu a posição e tornou-se tão violento quanto o pai. Batia na mãe e, certo dia quebrou um vidro e usou a ponta quebrada para infligir um ferimento extremamente grave no braço esquerdo de minha paciente, do qual ela, dois anos depois, ainda não se recuperou totalmente, e provavelmente nunca o fará.
Aparentemente dotada por natureza de uma personalidade forte, minha paciente insistiu não só em chamar a polícia, mas em apresentar queixa contra o irmão, que tinha quatorze anos na ocasião. Os magistrados concederam-lhe a suspensão condicional da pena. A mãe de minha paciente, estarrecida com a falta de solidariedade familiar, expulsou-a de casa aos dezesseis anos, para cuidar de si mesma. Isso pôs um fim aos seus planos - formulados sob as mais inauspiciosas circunstâncias - de continuar os estudos e tornar-se advogada. (p. 180)

Minha paciente, é claro, é alvo fácil para arrombadores e ladrões. Sua casa já foi arrombada cinco vezes no último ano, e foi assaltada na rua três vezes no mesmo período, duas vezes na presença de transeuntes.
Esse tipo de pessoa não conta com a simpatia das autoridades. A polícia já lhe disse, mais de uma vez, que a culpa era ela: alguém assim não deveria viver em um local como aquele. As ruas, em outras palavras, devem estar livres para hooligans, vândalos e assaltantes exercerem seus ofícios inevitáveis em paz, sendo dever dos cidadãos evitá-los. Não faz parte do dever do Estado defender as ruas de tais pessoas. (p. 184)

A vida nos bairros pobres da Grã-Bretanha demonstra o que acontece quando a maior parte da população, bem como as autoridades, perde a fé na hierarquia de valores. O resultado é todo tipo de patologia: onde o conhecimento não é preferível à ignorância, e a alta cultura à baixa, os inteligentes e os que têm sensibilidade sofrem a perda total do significado das coisas. O inteligente se autodestrói e o que tem sensibilidade perde as esperanças e onde a decorosa sensibilidade não é alimentada, encorajada, apoiada ou protegida, abunda a brutalidade. (p. 186)

O politicamente correto penetrou tão rapidamente em nossas instituições que hoje, praticamente, ninguém tem uma ideia clara sobre raça. As instituições de Bem-Estar Social estão preocupadas com raça a ponto de isso ser uma obsessão. O antirracismo oficial deu às questões raciais uma importância cardeal que nunca tiveram antes. As agências de Bem-Estar dividem as pessoas em grupos raciais para propósitos estatísticos com uma meticulosidade que não experimentava desde a época em que vivi, brevemente, na África do Sul há um quarto de século. (p. 191)

Por mais imbuídos ou afetados pelos valores progressistas que se tornem os policiais, os progressistas nunca os aceitarão como membros plenos da raça humana ou deixarão de criticá-los, pois, no fundo, é a mera existência da polícia o que ofende a consciência progressista, e não qualquer um de seus atos particulares. (p. 239)


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