sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Além do bem e do mal - Friedrich Nietzsche (2005)

E, se observei corretamente, em geral a "não liberdade de arbítrio" é vista como problema por dois lados inteiramente opostos, mas sempre de maneira profundamente pessoal: uns não querem por preço algum abandonar sua "responsabilidade", a fé em si, o direito pessoal ao seu mérito (as raças vaidosas estão deste lado -); os outros, pelo contrário, não desejam se responsabilizar por nada, e, a partir de um autodesprezo interior, querem depositar o fardo de si mesmos em algum outro lugar. Estes últimos, quando escrevem livros, costumam agora tomar a defesa dos criminosos; uma espécie de compaixão socialista é o disfarce que mais lhe agrada. (p. 26)

Pois o homem indignado, ou quem está sempre dilacerando e rasgando a si mesmo (ou, em seu lugar, o mundo, Deus, a sociedade) com os próprios dentes, pode ser moralmente superior ao sátiro sorridente e satisfeito, mas em qualquer outro sentido ele é o caso mais comum, mais irrelevante, menos instrutivo. E ninguém mente tanto como o indignado. (p. 32)

Independência é algo para bem poucos: - é prerrogativa dos fortes. E quem procura ser independente sem ter a obrigação disso, ainda que com todo o direito, demonstra que provavelmente é não apenas forte, mas temerário além de qualquer medida. Ele penetra num labirinto, multiplica mil vezes os perigos que o viver já traz consigo; dos quais um dos maiores é que ninguém pode ver como e onde se extravia, se isola e é despedaçado por algum Minotauro da consciência. Supondo que alguém assim desapareça, isto ocorre tão longe do entendimento dos homens que eles não sentem nem compadecem: - e ele não pode voltar! já não pode retornar seque para a compaixão dos homens! (p. 34)

Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na Terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual - mas sem podermos decidir, com segurança, o que aí é causa e o que é efeito, e mesmo se existe uma relação de causa e efeito. (p. 49)

É com seu próprio deus que as pessoas são mais desonestas: não lhe é permitido pecar. (p. 62)

"Eu fiz isso", diz minha memória. "Eu não posso ter feito isso", diz meu orgulho, e permanece inflexível. Por fim - a memória cede. (p. 62)

Quem alcança seu ideal, vai além dele. (p. 63)

Em circunstâncias de paz, o homem guerreiro se lança contra si mesmo. (p. 63)

Quem se despreza, ainda preza a si mesmo como desprezador. (p. 63)

A mulher aprende a odiar na medida em que desaprende a - enfeitiçar. (p. 64)

Na afabilidade não há traço de ódio aos homens, mas precisamente por isso demasiado desprezo aos homens. (p. 65)

Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar. (p. 65)

Envergonhar-se da própria imoralidade: é um degrau da escada ao fim da qual nos envergonhamos da nossa moralidade. (p. 65)

Descobrir que é correspondido deveria na verdade desenganar o amante em relação ao ser amado. "Como? É modesta a ponto de te amar? Ou estúpida? Ou - ou -." (p. 65)

Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos. (p. 66)

Quando o amor ou o ódio não participa do jogo, a mulher é jogadora medíocre. (p. 67)

Também o concubinato foi corrompido - pelo casamento. (p. 67)

Não odiamos enquanto nossa estima é pouca, mas quando estimamos alguém como igual ou superior. (p. 72)

As consequências do que fizemos nos alcança, indiferentes a que tenhamos "melhorado" nesse meio-tempo. (p. 73)

Na medida em que sempre, desde que existem homens, houve também rebanhos de homens (clãs, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas), e sempre muitos que obedeceram, em relação ao pequeno número dos que mandaram - considerando, portanto, que a obediência foi até agora a coisa mais longamente exercitada e cultivada entre os homens, é justo supor que via de regra é agora inata em cada um a necessidade de obedecer, como uma espécie de consciência formal que diz: "você deve absolutamente fazer isso, e absolutamente se abster daquilo", em suma, "você deve". (p. 85)

Quando todos são iguais, ninguém precisa de direitos. (p. 90)

Nós, que somos de outra fé - nós que consideramos o movimento democrático não apenas uma forma de decadência das organizações políticas, mas uma forma de decadência ou diminuição do homem, sua mediocrização e rebaixamento de valor: para onde apontaremos nós as nossas esperanças? (p. 91)

A degeneração global do homem, descendo ao que os boçais socialistas veem hoje coo o seu "homem do futuro" - como o seu ideal! - , essa degeneração e diminuição do homem, até tornar-se o perfeito animal de rebanho (ou, como dizem eles, o homem da sociedade livre"), essa animalização do homem em bicho-anão de direitos e exigências iguais é possível, não há dúvida! Quem já refletiu nessa possibilidade até o fim, conhece um nojo a mais que os outros homens - e também, talvez, uma nova tarefa!... (p. 92)

Por mais gratos que sejamos ao espírito objetivo - e quem já não teria se cansado até à morte de tudo que é subjetivo e de sua maldita "mesmicidade"! - afinal deve-se ter cautela também com a própria gratidão, e refrear o exagero com que ultimamente a renúncia e despersonalização do espírito é celebrada, como quase um fim em si, como redenção e transfiguração: o que costuma suceder na escola dos pessimistas, a qual também tem boas razões, de sua parte, para prestar homenagem ao "conhecimento desinteressado". (p. 97)

Hoje o gosto e a virtude do tempo enfraquecem e diluem a vontade, nada é tão atual como a fraqueza da vontade: em consequência, no ideal do filósofo devem ser incluídas na noção de "grandeza" justamente a força da vontade, a dureza e a capacidade para decisões largas; com a mesma justificativa com que a doutrina inversa e o ideal de uma humanidade simplória, abnegada, humilde e desinteressada se adequavam a uma época inversa, uma tal que, como o século XVI, sofresse da sua energia de vontade acumulada e das selvagens marés e cheias do egoísmo. (p. 106)

Hoje, inversamente, quando na Europa somente o animal de rebanho recebe e dispensa honras, quando a "igualdade de direito" pode facilmente se transformar em igualdade na injustiça: quero dizer, em uma guerra comum a tudo que é raro, estranho, privilegiado, ao homem superior, ao dever superior, à responsabilidade superior, à plenitude de poder criador e dom de dominar - hoje o ser-nobre, o querer-ser-para-si, o poder-ser-distinto, o estar-só e o ter-que -viver-por-si são parte da noção de "grandeza". (p. 107)

Julgar e condenar moralmente é a forma favorita de os espiritualmente limitados se vingarem daqueles que o são menos, e também uma espécie de compensação por, terem sido descurados pela natureza; e, por fim, uma oportunidade de adquirirem espírito e se tornarem sutis - a malícia espiritualizada. (p. 112)

O que na mulher inspira respeito e com frequência temor é sua natureza, que é "mais natural" que a do homem, sua autêntica astuciosa agilidade ferina, sua garra de tigre por baixo da luva, sua inocência no egoísmo, sua ineducabilidade e selvageria interior, o caráter inapreensível, vasto, errante de seus desejos e virtudes... O que, com todo o temor, desperta compaixão por esse belo r perigoso felino "mulher", é o fato de ela parecer mais sofredora, mais frágil, mais necessitada de amor e condenada à desilusão que qualquer outro animal. (p. 131)

Pois enquanto essa tal força de adaptação, que está sempre a testar condições cambiantes e começa um novo trabalho a cada geração, cada decênio quase, não permite em absoluto a pujança do tipo; enquanto a impressão geral causada por esses futuros europeus será, provavelmente, a de trabalhadores bastante utilizáveis, múltiplos, faladores e fracos de vontade, necessitados do senhor, do mandante, como do pão de cada dia; enquanto a democratização da Europa resulta, portanto, na criação de um tipo preparado para a escravidão no sentido mais sutil: o homem forte, caso singular e de exceção. terá de ser mais forte e mais rico do que possivelmente jamais foi - graças à ausência de preconceitos em sua educação, graças à enorme diversidade de exercitação, dissimulação e arte. Quero dizer que a democratização da Europa é, simultaneamente, uma instituição involuntária para o cultivo de tiranos - tomando a palavra em todo sentido, também no mais espiritual. (p. 135)

Há dois tipos de gênio: o que antes de tudo fecunda e quer fecundar, e o que prefere ser fertilizado e dar à luz. Assim também existe, entre os povos de gênio, aqueles a quem coube o problema feminino da gravidez e a secreta missão de plasmar, amadurecer, consumar - os gregos, por exemplo, foram um povo desse tipo, e também os franceses - ; e aqueles que têm de fertilizar e ser causa de novas ordens da vida - como os judeus, os romanos e, perguntando com toda a modéstia, os alemães? -, povos enlevados e atormentados por febres desconhecidas, irresistivelmente arrastados para fora de si, apaixonados e ávidos de outras raças (as que "preferem ser fertilizadas"-), e com isso dominadores, como tudo que se sabe pleno de força fecundante e, portanto, de "graça divina". Esses dois tipo de gênio se procuram, tal como o homem e a mulher; mas também se entendem mal - como o homem e a mulher. (p. 142)

Apenas mediante esforço, com auxílio da história, o homem nobre pode considerar que desde tempos imemoriais, em todas as camadas de algum modo dependentes, o homem comum era somente aquilo pelo qual era tido - jamais habituado a estabelecer valores por si mesmo, tampouco se atribuía outro valor que não o atribuído por seus senhores (o autêntico direito senhorial é criar valores). Entenda-se como consequência de um enorme atavismo o fato de o homem ordinário ainda hoje esperar uma opinião sobre si, e depois submeter-se instintivamente a ela: mas não somente a uma opinião "boa", em absoluto, e sim também a uma ruim ou injusta (pense-se, por exemplo, na maior parte das autoapreciações e depreciações que as mulheres devotas aprendem dos confessores, e o cristão devoto em geral de sua Igreja).

O que é, afinal, a vulgaridade? - Palavras são sinais sonoros para conceitos; mas conceitos são sinais-imagens, mais ou menos determinados, para sensações recorrentes e associadas, para grupos de sensações. (p. 165)

Quanto mais um psicólogo - um nato e inevitável psicólogo e leitor de almas - voltar a atenção para os casos e seres mais seletos, maior será o perigo de ele sufocar de compaixão: ele necessita dureza e serenidade, mais que qualquer outro homem. (p. 167)

Os maiores acontecimentos e pensamentos - mas os maiores pensamentos são os maiores acontecimentos - são os últimos a serem compreendidos:  as gerações que vivem no seu tempo não vivenciam tais acontecimentos - passam ao largo deles. O corre algo semelhante no reino das estrelas. A luz das estrelas mais distantes é a última a chegar aos homens; e enquanto ela não chega, os homens negam que ali - haja estrelas. "De quantos séculos precisa um espírito para ser compreendido?" - eis aí também uma medida, com que se estabelece uma hierarquia e etiqueta de que há necessidade: para o espírito e para a estrela. (p. 174)

Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma máscara. (p. 175)


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