segunda-feira, 22 de maio de 2017

Conflito de visões : Origens Ideológicas das Lutas Políticas - Thomas Sowell (2011)

Uma visão foi descrita como um "ato cognitivo pré-analítico". É o que percebemos ou sentimos antes de construirmos qualquer raciocínio sistemático que poderia ser chamado de teoria, e muito menos antes de deduzirmos quaisquer consequências específicas como hipóteses que devem ser testadas mediante provas. Uma visão é nossa percepção de como o mundo funciona. (p. 18)

As batalhas políticas diárias são um pot-pourri de interesses específicos, emoções coletivas, conflitos de personalidade, corrupção e vários outros fatores. (p. 21)

Mesmo a pré-história especulativa do homem, como uma criatura selvagem na natureza, difere drasticamente do ser livre, inocente, concebido por Jean-Jacques Rousseaus, e o participante selvagem da guerra sangrenta de um contra todos, concebido por Thomas Hobbes. (p. 23)

Dentro da tradição da visão irrestrita, temos a convicção de que escolhas estúpidas e imorais explicam os males d mundo - e de que as políticas sociais mais sábias ou morais e humanas são a solução. (p. 46)

A visão restrita, pelo contrário, vê os males do mundo como resultado das escolhas restritas e infelizes disponíveis em função das limitações morais e intelectuais inerentes aos seres humanos. Para melhorar esses males e promover o progresso, os indivíduos confiam em características sistêmicas de certos processos sociais, tais como tradições morais, mercado ou famílias. Consideram esses processos mais como evoluídos do que concebidos - e confiam mais nesses padrões gerais de interação humana do que em políticas específicas concebidas para reduzir diretamente certos resultados para determinados indivíduos ou grupos. (p. 46)

Nem todos os penadores sociais se encaixam nessa dicotomia esquemática. John Stuart Mill e Karl Marx, por exemplo, não se encaixam por diversas razões. Outros assumem posições intermediárias entre as duas visões, ou vão de uma para outra. (p. 47)

Apesar dos avisos necessários, continua sendo um fenômeno importante e surpreendente a grande relação entre a maneira como a natureza humana é concebida no início e toda a concepção do conhecimento, moralidade, poder, tempo, racionalidade, guerra, liberdade e lei que compõe uma visão social. (p. 47)

Na visão restrita, qualquer conhecimento próprio do indivíduo é extremamente inadequado para o processo decisório social, e, frequentemente, mesmo para suas próprias decisões pessoais. Uma sociedade complexa e seu progresso são possíveis, portanto, somente por causa de várias organizações sociais que transmitem e coordenam o conhecimento a partir de inúmeros contemporâneos, assim como a partir de um número ainda maior de antepassados. (p. 49)

A visão irrestrita não tinha uma visão tão restrita do conhecimento humano ou de sua aplicação por meio da razão. Foram os modelos da visão irrestrita do século XVIII que criaram "a idade da razão", como ficou expresso naquela época no título do famosos livro de Thomas Paine. (p. 53)

Aqueles que defendem um ato de legislar deliberado por meio do ativismo da justiça não o fazem baseados na existência da maioria democrática, mesmo naquela geração específica, mas com base na existência de um processo intelectual e moralmente superior para o processo decisório. Quando Dworkin rechaçou o processo oposto como uma "fé estúpida", "uma teoria pessimista da natureza humana", "a filosofia curiosa de Edmundo Burke" e "o desenvolvimento caótico e sem escrúpulos da história", foi um prelúdio da afirmação de uma superioridade competente que neutraliza uma maioria democrática de contemporâneos, longe de excluir gerações anteriores. Para Dworkin, "uma sociedade mais igualitária é uma sociedade melhor mesmo quando seus cidadãos preferem a desigualdade". (p. 67)

É compatível com a visão irrestrita promover fins igualitários por meios desiguais, considerando as grandes diferenças entre aqueles que Mill chamou de "os mais sábios e melhores" e aqueles que não alcançaram ainda esse nível intelectual e moral.
No lado oposto, os partidários da visão restrita tendem, em geral, a se preocupar menos com a promoção da igualdade econômica e social e mais com os perigos de uma desigualdade de poder, produzindo uma elite governante articulada composta por racionalistas. (p. 68)

O homem de negócios socialmente responsável deveria, por exemplo, contratar pessoas desprovidas, investir em coisas que parecem mais necessárias para a sociedade do que as que fossem mais lucrativas para a sua empresa, bem como destinar parte da renda a atividades caritativas e culturais em vez de aplicar tudo em ações ou reinvestir em seus próprios negócios.
A visão restrita vê essas coisas como fora da alçada dos homens de negócios, levando em conta as mais amplas ramificações dessas decisões em um processo sistêmico complexo. De acordo com a visão restrita do conhecimento humano, o que cabe ao homem de negócios é a direção de sua firma individual para promover, dento da lei, sua prosperidade. É no efeito sistemático da concorrência, mais do que nas intenções individuais dos homens de negócios, que esta visão confia para produzir benefícios sociais. Segundo Adam Smith, é somente quando o homem de negócios "busca seu próprio ganho" que ele contribui - através do processo de concorrência - na promoção do bem social "mais efetivamente do que quando realmente tem a intenção de promovê-lo". (p. 70)

Os textos escritos pelos partidários da visão restrita têm muitos exemplos de consequências contraproducentes de políticas bem intencionadas. Porém, para os partidários da visão irrestrita, isso significa se ater somente a erros isolados que podem ser corrigidos, a fim de se opor a tendências que são socialmente benéficas como um todo. (p. 70)

Na visão restrita, o dever moral do homem de negócios é a fidelidade aos acionários, que lhe confiaram sua poupança, não a busca sincera do bem público por meio de doações caritativas, investimentos ou decisões relativas a contratações capazes de comprometer essa confiança. De forma semelhante, o dever moral do juiz é executar fielmente a lei que jurou respeitar, não mudar sinceramente aquela lei para produzir resultados melhores de acordo com o que vê. Dentro dessa visão, um dever moral de uma pessoa dotada de conhecimento é promover fielmente o processo intelectual entre seus alunos e leitores, não levá-los a conclusões específicas que ele sinceramente vê como as melhores para a sociedade. (p. 72)

É necessário observar que nenhuma das grandes visões históricas se mostra como 100% irrestrita ou 100% restrita. (p. 74)

Adam Smith considerava inapropriado que jovens gozassem da mesma confiança que os velhos. "Os mais s[abios e experientes são em geral os menos crédulos", disse ele, e isso dependia fundamentalmente do tempo: "Somente a sabedoria adquirida e a experiência podem ensinar a incredulidade, e muito frequentemente a ensinam o bastante". (p. 76)

A arrogância e o exibicionismo de intelectuais foram, do mesmo modo, temas recorrentes na obra de Burke - assim como os perigos que esses intelectuais representavam para a sociedade. Ele falou de suas "grandes teorias" para as quais teriam de se curvar o céu e a terra. Hobbes também via aqueles que "se veem como mais sábios e mais capazes de governar" como fontes de distração e de guerra civil. Da mesma forma, Hamilton via os intelectuais como perigosos, por causa de sua tendência de seguir "os fantasmas traiçoeiros de um espírito de inovação sempre sedento e nunca satisfeito". (p. 80)

Contudo, para os adeptos da visão irrestrita, os intelectuais são "precursores para seus pares na descoberta da verdade", segundo Godwin. (p. 81)

A visão restrita não é uma visão estática do processo social, tampouco uma visão de que o status quo deveria ser alterado. Pelo contrário, seu princípio central é a evolução. (p. 86)

Na visão restrita da natureza humana, esse tipo de desenvolvimento não tem probabilidade de se tornar geral, de tal forma que a injustiça de pagar a indivíduos recompensas imerecidas deve ser compensada pela injustiça de tirar da sociedade benefícios existentes, não pagando o suficiente para oferecer incentivos para sua produção e plena utilização. (p. 105)

Na visão irrestrita, a própria natureza humana é uma variável, e, de fato, a variável fundamental a ser mudada. (p. 106)

Quando há pessoas que vivem abaixo de algum nível econômico definido como pobreza, os adeptos da visão irrestrita tendem a querer subsidiá-los de alguma forma para produzir diretamente um resultado mais desejável na forma de um padrão de vida mais elevado. Os partidários da visão restrita voltam-se para incentivos de processo, criados por esses planos e suas consequências no comportamento futuro, não somente entre esses beneficiários específicos, mas também em relação a outros que podem se tornar menos cuidadosos quando se trata de evitar o desemprego, a gravidez em adolescentes ou outros fatores vistos como geradores da incidência geral de pobreza. (p. 113)

Essas mudanças podem ser repentinas, em que um evento em particular reorienta todo o pensamento de alguém, ou a mudança pode ser análoga à água que desgasta a pedra, de forma que uma visão imperceptivelmente desaparece, para ser substituída por um conjunto de mudanças dos pressupostos inerentes sobre o homem e o mundo. Esse segundo tipo de mudança pode não deixar um registro claro de quando ou como aconteceu, talvez nem uma consciência nas pessoas envolvidas, a não ser saber que as coisas não são mais vistas da mesma forma que já foram.
Algumas mudanças de visões tendem a ser associadas à idade. O clichê dos radicais aos vinte anos, que se tornam conservadores aos quarenta, data de muitas gerações. (p. 115)

O melhor tipo de mundo para o homem tal como é concebido por uma visão é desastroso para o homem segundo a concepção da outra visão. Os partidários das duas visões estão, portanto, predestinados a serem adversários em uma questão após a outra. (p. 119)

Nas duas visões, o ser hipotético define princípios sociais, mas o locus de controle continua a ser pessoas reais operando coletivamente por meio de representantes, segundo Rawls, e individualmente, de acordo com Smith. Uma estrutura social é um produto coletivo, tanto na visão restrita quanto na irrestrita, mas o exercício de controle contínuo é o que os separa dentro do autointeresse individual dos tomadores de decisão da visão restrita e os decisores representantes para a coletividade da visão irrestrita. (p. 124)

Uma determinada visão pode encaixar-se em qualquer ponto no continuum entre as visões restritas e irrestritas. Também há a possibilidade de combinação de elementos das duas visões de forma tanto consistente quanto inconsistente. O marxismo e o utilitarismo são exemplos clássicos de visões híbridas, embora de formas diferentes. (p. 125)

A teoria marxista da história é essencialmente uma visão restrita, com restrições cada vez menores ao longo dos séculos, terminando no mundo irrestrito do comunismo. (p. 125)

Nas palavras de Engels, "cada desejo individual é obstruído por todos os outros e o que emerge é algo que ninguém quis". (p. 127)

Bentham rejeitava a tomada de decisão na economia por representantes e dizia que um adulto livre e racional deveria ter a liberdade de fazer qualquer negociação financeira não fraudulenta de sua escolha. (p. 131)

O que está no âmago da diferença entre elas é saber se as capacidades e o potencial humanos permitem que decisões sociais sejam tomadas coletivamente através da racionalidade articulada de representantes, para produzir os resultados sociais específicos desejados. A questão crucial é, afinal, não o que é especificamente desejado (uma questão de premissas de valor), mas o que de fato pode ser alcançado (uma questão factual e de causa e efeito), embora, em termos práticos, objetivos considerados inalcançáveis sejam rejeitados, mesmo sendo reconhecidos como moralmente superiores em termos abstratos. (p. 135)

O fascismo apropriou-se de alguns aspectos simbólicos da visão restrita, sem os processos sistêmicos que lhe deram sentido. Foi uma visão irrestrita de governança que atribuiu a seus líderes uma abrangência de conhecimento e dedicação ao bem comum inteiramente incompatível com a visão cujos símbolos evocava.
Adeptos tanto da visão restrita quanto da irrestrita veem o fascismo como a extensão lógica da visão do adversário. Para os que estão na esquerda política, o fascismo é "a extrema direita". Inversamente, para Hayek, o "nacional socialismo" (nazismo) de Hitler foi de fato socialista em seu conceito e execução. (p. 137)

Segundo Condorcet, "uma verdadeira igualdade" requer que "mesmo as diferenças naturais entre homens sejam mitigadas" pela política social. Sem probabilidades iguais de alcançar determinados resultados, a igualdade formal era inadequada - quando não hipócrita - ,segundo a visão irrestrita. George Bernard Shaw, por exemplo, ridicularizou a igualdade formal de oportunidades: "Dê a seu filho uma caneta tinteiro e um punhado de papel, diga-lhe que agora ele tem uma oportunidade igual à minha de escrever peças e veja o que ele lhe dirá!". (p. 146)

Isso não queria apenas dizer que alguns têm pouco enquanto outros têm muito. Causa e efeito estão presentes: alguns têm pouco porque outros têm muito, segundo esse raciocínio que durante séculos fez parte da visão irrestrita. (p. 148)

A consciência sobre as desigualdades e a repulsa em relação a elas não se restringiam aos adeptos da visão irrestrita. Reações semelhantes têm sido comuns desde Adam Smith no século XVIII a Milton Friedman no século XX. (p. 149)

Na visão restrita de Friedman e de outros, acreditava-se que as situações de "exploração" podiam ser eliminadas de forma mais efetiva por características sistêmicas de uma economia competitiva do que por intervenção de líderes políticos em processos econômicos complexos que não podem compreender. O perigo não estava comente nas consequências adversas de sua intervenção na economia, porém mais nas horríveis consequências de uma concentração tão grande do poder político. Resumindo, as tentativas de igualar os resultados econômicos levam a uma maior - e mais perigosa - desigualdade do poder político. Esse foi o tema central de O Caminho da Servidão de Hayek, em que o objetivo de combinar simultaneamente liberdade e igualdade de resultados no socialismo democrático foi declarado como "inalcançável" enquanto resultado, mas perigoso enquanto um processo de mudança rumo ao despotismo.
Socialistas democratas não foram acusados de conspirar para instaurar um despotismo; eram, na verdade, considerados por Hayek indivíduos genuinamente humanos sem a "crueldade" necessária para atingir seus objetivos sociais, mas também eram vistos por ele como pavimentadores do caminho para outros - incluindo fascistas e comunistas - que concluiriam a destruição da liberdade depois de minar irremediavelmente os princípios de igualdade perante a lei e as limitações no poder político na busca da "ilusão de justiça social". (p. 152)

Hayek questionou "se é moral que homens se submetam ao poder da direção que teria de ser exercida para que os benefícios provenientes de indivíduos fossem significativamente descritos como justos ou injustos". (p. 153)

No mundo do século XVIII, em que a maior parte das pessoas era composta de camponeses, Godwin declarou que "o camponês passa pela vida, com algo da insensibilidade desprezível de uma ostra". Rousseau comparava as massas a "um inválido estúpido, pusilânime". Segundo Condorcet, a "raça humana ainda revolta o filósofo que contempla sua história". No século XX, George Bernard Shaw incluía a classe operária entre as pessoas "detestáveis" que "não têm o direito de viver". Ele dizia, ainda: "Eu ficaria desesperado se não soubesse que eles vão todos morrer logo, e não há necessidade alguma de que sejam substituídos por pessoas como eles".
Embora a visão irrestrita tenha caracterizado o igualitarismo como uma convicção de que as pessoas deveriam dividir de forma mais igual os benefícios materiais e de outros tipos da sociedade, ela tente a ver as capacidades existentes das pessoas como muito mais desiguais do que a visão restrita. Entre os economistas contemporâneos que propõem caminhos para países do Terceiro Mundo para sair da pobreza, aqueles que representam uma visão restrita (P. T. Bauer e T. W. Schultz, por exemplo) descrevem as massas de camponeses do Terceiro Mundo como um depósito de habilidades valiosas e capazes de adaptações significativas para mudar condições econômicas, contanto que as elites permitam que concorram no mercado, enquanto aqueles que são politicamente mais de esquerda, como Gunnar Myrdal, descrevem as massas de camponeses como extremamente atrasadas e redimíveis somente por meio dos esforços comprometidos da elite instruída. (p. 161)

Não é sobre o nível de igualdade que as duas visões discordam, mas sobre o que deve ser igualado. Na visão restrita, é o julgamento que deve ser exercido de forma igual e individual tanto quanto possível, sob a influência das tradições e dos valores provenientes da experiência de muitos, amplamente compartilhada, mais do que da articulação especial de poucos. Na visão irrestrita, são as condições materiais da vida que devem ser igualados sob a influência ou poder daqueles que têm as condições intelectuais e morais necessárias para fazer que o bem-estar de outros se torne sua preocupação específica. (p. 164)

Para os adeptos da visão restrita, as pessoas cometem crimes porque são humanas - porque colocam seus próprios interesses ou egos acima dos interesses, sentimentos ou vidas de outros. Partidários da visão restrita põem ênfase em estratagemas sociais para evitar o crime ou castigo, ou seja, para desencorajá-los. Mas para o partidário da visão irrestrita é difícil entender como alguém cometeria um crime terrível sem que houvesse uma causa específica, ainda que fosse a cegueira. (p. 171)

Enquanto Smith via a imposição de uma punição como uma tarefa dolorosa, adeptos da visão irrestrita viam essa questão como uma indulgência desnecessária na vingança, "um retrocesso embrutecedor para todo o horror da desumanidade do homem de tempos remotos". Com essa visão, o criminoso é visto como uma vítima - uma "pobre vítima", segundo palavras de Godwin - primeiramente, das circunstâncias especiais que provocaram o crime, e depois, de pessoas com sede de castigo. (p. 174)

O individualismo adquire significados totalmente diferentes nas duas visões. Na visão restrita, o individualismo significa deixar o indivíduo livre para escolher entre as oportunidades, recompensas sistematicamente geradas, e castigos provenientes de outros indivíduos também livres, sem se submeter a conclusões articuladas impostas pelo poder de entidades organizadoras como o governo, sindicatos ou cartéis. Todavia, na visão irrestrita, o individualismo refere-se ao (1) direito de indivíduos comuns "participarem" das decisões articuladas de entidades coletivas e ao (2) direito daqueles com a sabedoria e a virtude necessárias de terem alguma imunidade em relação a restrições sociais sistêmicas ou organizadas. (p. 178)

Não costuma surpreender dizer que as razões pelas quais o governo exerce o poder na economia também diferem nas duas visões. Na visão irrestrita, é uma questão de intenção, enquanto para a visão restrita, é uma questão de incentivos. A intenção do governo de proteger interesses públicos obriga-o a interferir na economia para desfazer o mal feito pelo poder econômico privado, de acordo com a visão irrestrita. Entretanto, o incentivo inerente ao governo no sentido de aumentar seu próprio poder leva-o a interferir frequentemente de forma desnecessária e maléfica, segundo a visão restrita. (p. 181)

Na visão irrestrita, para a qual os resultados e não os processos são fundamentais, se o comportamento escolhido por A mudar o comportamento de B, então A forçou B a se comportar de determinada forma. Por exemplo, segundo Tribe, se o governo se recusar a pagar abortos de mulheres indigentes, então ele provoca "partos forçados", fazendo, na verdade, com que "mulheres (pelo menos mulheres pobres) sejam incubadoras involuntárias", portanto, "negando às mulheres o poder sobre seu próprio corpo e futuro". (p. 194)

Os benefícios fundamentais dos direitos de propriedade foram concebidos como sociais, permitindo um processo econômico com maior eficiência, um processo social com menos discórdia e um processo político com mais poder e influência difusos do que o possível controle político subcentralizado da economia. (p. 214)

Independentemente de seus mecanismos ou detalhes, a justiça social tem sido o tema dominante da visão irrestrita, de Godwin a Rawls. Como outras formas de justiça, ela é concebida mais como um resultado do que como um processo. Porém, enquanto o imperativo da justiça social permeia a visão irrestrita, ele é praticamente inexistente na visão restrita. Pensadores sociais na tradição da visão restrita consideram seus aspectos humanos, assim como questões de eficácia, mas isso não implica que um resultado de distribuição de renda seja mais justo do que outro. F.A.Hayek é um dos poucos escritores da visão restrita que discute a justiça social - e ele a caracteriza como "absurda", uma "miragem", "uma invocação vazia", "uma superstição quase religiosa" e um conceito de que "não pertence à categoria do erro, mas à da estupidez". Outros contemporâneos na tradição da visão restrita - Milton Friedman e Richard Posner, por exemplo - não se incomodam em discuti-la, ainda que seja como algo a ser refutado.
O conceito de justiça social, portanto, representa os extremos do conflito de visões - uma ideia da maior importância para uma das visões e abaixo da crítica para a outra. (p. 221)

O que distingue a visão irrestrita não é o fato de prescrever preocupação humana em relação aos pobres, mas de ver as transferências de benefícios materiais ao menos afortunados não simplesmente uma questão de humanidade, mas, sobretudo, como uma questão de justiça. (p. 222)

Fundamentalmente para o conceito de justiça social é a noção de que indivíduos têm direito a alguma parte da riqueza produzida por uma sociedade simplesmente por serem membros daquela sociedade, independentemente de quaisquer contribuições individuais feitas ou não para a produção de tal riqueza. (p. 222)

Segundo Godwin: "O efeito produzido por essa doutrina condescendente é que a satisfação de nossos desejos fica à disposição de uns poucos, permitindo-lhes fazer demonstração de generosidade com o que de fato não lhes pertence, bem como comprar a submissão dos pobres mediante o pagamento de uma dívida". (p. 223)

Hayek via alguns defensores da justiça social como cinicamente cientes de participarem da concentração de poder; via, contudo, perigo maior naqueles que sinceramente promoviam o conceito com um fervor que inconscientemente prepara o caminho para outros - totalitaristas - intervirem depois da ruína de barreiras ideológicas, políticas e legais ao poder do governo, tornando sua tarefa fácil. Ele via o nazismo dessa forma, como "a culminância de uma longa evolução de pensamento" na Alemanha promovida por socialistas e outros que tinham objetivos muito diferentes dos nazistas, mas que fomentaram a erosão do respeito por regras legais a favor de imperativos de resultados sociais específicos.
O comunismo também foi visto por Hayek como um beneficiário residual da maneira de pensar promovida por pessoas que podem não ter o desejo de ver o comunismo triunfar. Segundo Hayek, a "justiça distributiva" é inerentemente "irreconciliável com o princípio e direito", e o ideal de um governo de leis e não de homens é tudo o que separa uma sociedade livre e o totalitarismo. Ele cita um escritor soviético que declarou que o "comunismo significa não a vitória da lei socialista, mas a vitória do socialismo sobre qualquer lei". Para Hayek, isso é o que a justiça social como objetivo ignorado afinal significa - uma alternativa para a justiça meramente "formal" como regras impessoais de um processo. (p. 228)

Muito do que a visão irrestrita vê como moralmente necessário a ser feito, a visão restrita vê como impossível ao homem fazer. (p. 231)

Um exemplo desse fenômeno é a declaração frequentemente repetida de que índices mais altos de lares desfeitos e de gravidez na adolescência entre os norte-americanos negros eram devidos ao "legado da escravidão". Somente depois de décadas de ampla repetição dessa afirmação foi feito um estudo abrangente factual, no qual se mostrou que lares desfeitos e gravidez na adolescência era de longe menos comuns entre os negros submetidos à escravidão e as gerações que vieram depois da emancipação do que as de hoje. Uma vez mais a questão não é que uma determinada conclusão estava equivocada, mas que uma afirmação ampla e sem fundamento não foi contestada ao longo de muitos anos porque era adequada para determinada visão. A capacidade de sustentar asserções sem evidências é outro sinal da força e persistência das visões. (p. 244)

As duas visões devem omitir coisas que existem na realidade, e que a maioria dos defensores dessas visões admitiria existir na realidade, por mais que discordassem sobre a prevalência ou o efeito dos fatores omitidos. (p. 245)

A crescente complexidade de teorias geralmente reflete, em parte, as crescentes dificuldades de defendê-las em suas formas mais puras. Dados empíricos florescentes, e formas ainda mais sofisticadas de analisá-los, podem não conseguir dar um único golpe fatal a qualquer uma das grandes visões contrárias que dominaram os dois últimos séculos. Porém tem havido alguns recuos estratégicos importantes dos dois lados. Nenhuma das visões pode manter com segurança o ar de verdade irrefutável que alguns de seus partidários do século XVIII tinham. (p. 247)

Valores são vitais. Mas a questão de que tratamos aqui é se antecedem ou seguem as visões. A conclusão de que provavelmente decorrem de visões mais do que as visões resultam deles não é simplesmente a conclusão desta análise em particular, mas é, ainda, demonstrada pelo comportamento real daqueles que têm o poder de controlar ideias por meio da sociedade, quer essas autoridades sejam seculares ou religiosas. (p. 251)

Adeptos da visão restrita e da irrestrita reconheceram há muito tempo que (...) o que é dito nessas lutas políticas não tem necessariamente ligação com a verdade, ou mesmo com o que qualquer um acredita ser a verdade. (p. 252)

Como alguns dos conceitos-chave usados pelos dois lados foram definidos originalmente nos termos da visão restrita, os adeptos da visão irrestrita tiveram que diferenciar seus conceitos como "verdadeira" liberdade, ou "verdadeira" igualdade, por exemplo, em oposição simplesmente a liberdade "formal" ou igualdade "formal". Entretanto, a ascendência posterior da visão irrestrita obrigou os adeptos da visão restrita a ter uma postura defensiva, na qual tentavam estabelecer as definições mais formais, restritas desses termos como características de processo. (p. 259)


Nenhum comentário:

Postar um comentário