domingo, 3 de setembro de 2017

Década perdida - Dez anos de PT no poder - Marco Antonio Villa (2014)

São anos marcados pela hipocrisia. Não há mais ideologia. Longe disso. A disputa política é pelo poder, que tudo pode e no qual nada é proibido. O Brasil de hoje é uma sociedade invertebrada. Amorfa, passiva, sem capacidade de reação. É uma República bufa, uma República petista. (p. 8)

Para demonstrar que ainda representava o papel de socialista - quatro anos depois, em entrevista declararia: "nunca fui de esquerda" -, Lula compareceu ao Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Discursou entusiasticamente. mas, em seguida, viajou à Suíça, onde participaria do Fórum Econômico Mundial, em Davos. (p. 26)

Foi a 14 de janeiro de 2003. Seria então apresentado ao publicitário mineiro por José Dirceu: "Presidente, este aqui é o Marcos Valério, um publicitário lá de Minas que está ajudando a gente naquele negócio das dívidas do PT".
Valério "ajudou" o PT. Uma semana depois, o banco Rural depositaria R$ 10 milhões na conta do partido. No mesmo dia, foram depositados quase R$ 100 mil na conta da empresa do segurança pessoal de Lula, Freud Godoy, dinheiro destinado a pagar as despesas de Lula com o translado de parentes e amigos para a posse.
Valério intermediou - para suas empresas de publicidade e para os bancos Rural e BMG - negócios "privilegiados" com o governo. Bastaria citar, por exemplo, a concessão feita por Lula, a 17 de setembro de 2003, ao BMG, que deteve a exclusividade, por três meses, da oferta de empréstimos consignados aos funcionários públicos federais, que alcançariam, no período, a soma de R$ 3 bilhões. O faturamento do banco cresceu repentinamente: mais de 200%. A próspera sociedade entre o publicitário e a alta direção petista prolongar-se-ia por mais de dois anos ainda, interrompida somente após as denúncias do deputado Roberto Jefferson, em maio de 2005. (p. 27)

O mês de junho (de 2003) seria marcado pela polêmica reforma da Previdência, a emenda constitucional nº 41. Os principais pontos consistiam na taxação dos servidores inativos da União e dos estados, no aumento da idade mínima para aposentadoria (homens, sessenta anos; mulheres, 55), na exigência de no mínimo vinte anos de serviço público para que o funcionário pudesse aposentar-se, na limitação da aposentadoria do funcionário público ao teto do INSS, à época de R$ 2.400, e num valor máximo de proventos tanto para os ativos como para os inativos. (p. 34)

Na primeira semana de julho (de 2003), o governo tomou uma importante decisão: a de unificar os programas assistenciais. As "bolsas", até então espalhadas, seriam reunidas. Como Benedita da Silva não mostrara aptidão para exercer suas atribuições na Secretaria Especial da Assistência e Promoção Social, que tinha status de ministério, o responsável inicial por dar os primeiros passos na centralização dos programas foi o todo-poderoso José Dirceu. Era o início do Bolsa-Família - denominação criada pelo publicitário Duda Mendonça. (p. 38)

A Funasa (Fundação Nacional de Saúde), vinculada ao Ministério da Saúde, sempre foi desejada pelos corruptos devido aos recursos fabulosos que movimenta. Em 2000, em decreto definira que os coordenadores regionais da fundação deveriam ser funcionários de carreira, com pelo menos cinco anos de experiência em cargos de direção. Os petistas mudariam isso. Afinal, o decreto dificultava o aparelhamento da Funasa. Tinham razão. E como superam o obstáculo? Incluíram um "preferencialmente" ao texto. Ou seja, o indicado deveria ser preferencialmente - e não necessariamente, como antes - um funcionário de carreira com mais de cinco anos em cargos de direção. Aquele acréscimo retirava o caráter terminativo do decreto anterior. E isso se repetiria em toda máquina estatal.
O caso do Instituto Nacional do Câncer (Inca) viraria referência para o estilo petista de aparelhamento do Estado. Conhecido pela excelência no combate ao câncer, o Inca seria entregue, sob a gestão do PT, a uma senhora cuja experiência anterior consistia na direção de parques e jardins da prefeitura carioca. No hospital, portanto, faltava de tudo: remédios, material de limpeza, equipamentos. Mas não faltavam petistas em todos os postos de confiança. (p. 43)

O mês de outubro (de 2003) terminaria com nova denúncia. Em dez meses, Lula gastara, com viagens e diárias, o dobro que Fernando Henrique no mesmo período de governo: quase R$ 20 milhões. (p. 46)

Abril (de 2004) seria marcado por uma série de invasões do MST, mobilização que o grupo chamou de "abril vermelho". Os sem-terra reivindicavam a intensificação da reforma agrária. No ano anterior, 36 mil famílias haviam sido assentadas, e Lula prometera multiplicar o número por quatro em 2004. Até então, porém, pouco mais de 10 mil tinham sido contempladas.
Curiosamente, entre 1998-2001, durante o segundo governo FHC, a média fora de 95 mil família assentadas por ano. (p. 65)

A proposta de aumento do salário mínimo, tradicionalmente anunciada às vésperas do 1º de maio, desagradou algumas lideranças petistas. Um acréscimo de apenas R$ 20, o que o levava a R$ 260 - valor que a Câmara acataria, com 266 votos favoráveis e 166 contrários.
O PFL, porém, propunha R$ 275. Cinco deputados petistas e três do PC do B votaram com a oposição - a parte vencida. Mas o Senado derrubaria a decisão da Câmara e aprovaria o salário mínimo de R$ 275, derrotando o governo.
A proposta de R$ 260 só sairia vencedora nove semanas depois, a 23 de junho. (p. 67)

Ocorridos às vésperas da eleição o episódio do dossiê - "um tiro no pé", como o classificara - e a consequente prisão dos "aloprados" prejudicaram Lula na reta final do primeiro turno. Da mesma forma, a ausência no debate eleitoral patrocinado pela Rede Globo também o atrapalhara.
Nas semanas que antecederam a nova votação, porém, encampou um tom agressivo, mantendo-se sempre na ofensiva, e fez uma campanha em que resgatava temas que deixara de lado durante o mandato, como a defesa da presença estatal na economia, o que colocaria o candidato tucano nas cordas, uma vez que imputava a Alckmin bandeiras que o governador paulista jamais defendera - como a privatização da Petrobrás. A estratégia se mostraria um sucesso.
No segundo turno da eleição presidencial, Geraldo Alckmin obteve 37.543.178 votos - quase dois milhões e meio a menos do que no primeiro, um caso singular. Lula, de sua parte, aumentou seus votos em 12 milhões, o que significava 60,87%. (p. 138)

Um fato importante - e que marcaria o segundo mandato de Lula - foi a designação de Franklin Martins para a Secretaria de Comunicação Social. O jornalista tinha uma longa carreira política, iniciada no MR-8, e fora um dos participantes do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick.
Trabalhava, então, na Rede Globo. Conhecia as entranhas do poder brasiliense. Sabia, como poucos, construir uma relação - favorável ao governo - com a mídia. E acabaria se transformando, como no clássico de George Orwell, no ministro da verdade de Lula.
Antes dele, havia uma tímida política de apoio governamental à imprensa chapa-branca. Já era dada atenção especial aos veículos de comunicação - incluindo internet e blogs - que apoiavam o PT. Mas só com Franklin a máquina seria profissionalizada, azeitada e ampliada.
Através de "patrocínios" do governo federal e de empresas estatais, milhões de reais foram destinados aos apoiadores do petismo, e se organizou, como nunca na história do Brasil, uma rede eficaz de propaganda dos êxitos - reais ou não -  da administração de Lula. Aos críticos do lulismo - transformados não em adversários, mas em inimigos - reservou-se o epíteto de membros do "partido da imprensa golpista". (p. 151)

Entre 2003 e 2006, o governo transferiu R$ 72 milhões para as centrais sindicais. Nunca os sindicalistas tiveram tanto dinheiro e poder. Formaram, desde então, a aristocracia sindical, dependente financeiramente e servil politicamente ao Estado. (p. 152)

Em outra frente, as operações da Polícia Federal, sempre realizadas com ampla cobertura da imprensa, aparentemente orientadas para o combate à corrupção, acabaram atingindo o governo, direta ou indiretamente. (p. 154)

A Operação Navalha, deflagrada em 17 de maio, prenderia 46 suspeitos em nove estados, acusados de integrar uma quadrilha especializada em desviar recursos públicos. Segundo a denúncia, a construtora Gautama seria a principal articuladora do esquema de corrupção. Vários políticos e empresários foram detidos. (p. 154)

Duas semanas depois, nova operação da PF, agora contra a máfia dos caça-níqueis, alcançaria um dos irmãos de Lula, Genival Inácio da Silva, o Vavá. Ele tentara favorecer, por meio de tráfico de influência, empresários que tinham negócios com o governo, e ficaria conhecido pela frase pronunciada ao pedir propina: "Ô, arruma dois pau pra eu". (p. 154)

A sucessão de escândalos atingiria, ainda em maio (de 2007), o presidente do Senado Renan Calheiros. Descobriu-se que um lobista da construtora Mendes Júnior pagava o aluguel e uma pensão mensal para a jornalista Mônica Veloso, que tivera uma filha com o senador. (p. 155)

A todo momento, ao longo de seus oito anos de governo, Lula faria referência aos tempos de operário, sempre exagerando ou mentindo, sem qualquer pudor, a respeito. Chegou a dizer que "tinha ficado 27 anos no chão de fábrica". Mentira.
Segundo sua biógrafa oficial, ele começara a trabalhar, depois de formado no SENAI, em 1963, e deixou o "chão da fábrica" - no caso, a Villares - em 1972. Portanto, trabalhou nove anos , e não 27! (p. 162)

O PMDB passara a ocupar cargos importantes no governo e detinha seis ministérios. Em 2003, no início da primeira Presidência de Lula, o partido ficara sem qualquer pasta. Em 2005, entretanto, já ocupava três. Aquela escalada era uma das peças da estratégia de Lula para amarrar o PMDB com vistas à sucessão presidencial em 2010. Como de hábito, o presidente pensava mais no projeto de poder do PT - e no se, destacadamente - do que na administração pública. (p. 168)

Mas, quem era Dilma Rousseff?
Ela seria notada no mundo político apenas em 2002 - e somente no final do ano, após a eleição de Lula. Nos anos de regime militar, atuou em grupos de luta armada, sem contudo se destacar entre as lideranças. Tinha um passado no PDT. Fizera política no Rio Grande do Sul, no entanto exercendo funções pouco expressivas. Tentara cursar pós-graduação em economia na Unicamp, mas sem sucesso: não conseguiu sequer fazer um simples exame de qualificação de mestrado. Mesmo assim, durante anos foi apresentada como "doutora" em economia. Quis também se aventurar no mundo dos negócios. Abriu então, em Porto Alegre, uma lojinha de mercadorias populares, conhecida como "de 1,99". Novamente, entretanto, fracassaria - logo tendo de fechar as portas. Caminharia para a obscuridade se vivesse num país politicamente sério. Porém, para sorte dela, nascera no Brasil; de modo que, depois de tantos tombos, seria premiada: virou ministra de Minas e Energia. (p. 172)

O próximo passo marqueteiro do governo consistiria em transformar uma parte dos consumidores de baixa renda, então em processo de ascensão social, em uma nova categoria: a classe C. Assim, da noite para o dia, a classe média era inchada com mais de 20 milhões de pessoas, como se fosse possível uma revolução econômica em tão curto espaço de tempo. (p. 173)

As reservas, em setembro (de 2008), estavam em US$ 206 bilhões - o que permitiu ao país resistir às pressões especulativas contra o real. Os gastos públicos em quatro anos, porém, tinha aumentado 38%, enquanto o PIB, no mesmo período, crescera 20% - o que não era bom do ponto de vista econômico. (p. 180)

No Brasil, a fuga de dólares em 2008 fora de US$ 48,9 bilhões, o equivalente a 25% das reservas em moeda estrangeira - a maior retirada desde 1982. Ao contrário do que ocorrera nos anos anteriores, desta vez a balança comercial não ajudou a compensar a corrida dos dólares.
Em outubro de 2008, a produção industrial brasileira caíra 1,4% em relação a setembro. No mês seguinte, a queda fora de 7,2%; e, em dezembro, chegaria a 12,4% - a maior retração desde o início da série histórica do IBGE, em 1991. A crise freou o PIB em 3,6% no último trimestre de 2008, assinalando o mais fraco desempenho econômico desde o Plano Real.
A comparação com outros países mostraria que o Brasil estava entre os mais atingidos pelo desarranjo global, uma situação muito distinta daquela que o governo vinha insistentemente propagandeando. (p. 187)

Em julho (de 2009), o Brasil fechou um novo acordo com o Paraguai sobre o uso e o pagamento da energia gerada pela usina de Itaipu. O país pagava anualmente ao vizinho US$ 120 milhões. O presidente paraguaio Fernando Lugo, porém, vinha exigindo um aumento neste valor. O oferecimento de Lula, contudo, superaria sua expectativa mais otimista: US$ 360 milhões! ou seja: pelo mesmo volume de energia o triplo do preço.
O presidente brasileiro consideraria aquela uma decisão histórica. E foi mesmo: mas para o Paraguai. Não satisfeito, o governo do Brasil ainda concedeu um empréstimo de US$ 450 milhões para a construção de uma linha de transmissão da usina até Assunção. (p. 195)

A visita a Cuba, em março (de 2010) a quarta de Lula como presidente da República, mais uma vez colocava em tela a questão dos direitos humanos. Na ilha, dominada pela família Castro há meio século, alguns presos políticos encontravam-se então em greve de fome. Em fevereiro, após 85 dias sem comer, Orlando Zapata morrera. Não fora o primeiro. Lula, porém desqualificaria a resistência: "Lamento profundamente que uma pessoa se deixe morrer por fazer uma greve de fome. Vocês sabem que sou contra, porque fiz greve de fome". E concluiria: "Imagine se todos os bandidos que estão presos em São Paulo entrarem em greve de fome e pedirem liberdade".
O presidente, que mentia, cometeria dois graves erros. A greve de fome dos cubanos era de prisioneiros políticos condenados por uma ditadura quando defendiam as liberdades democráticas - este, o primeiro. O segundo dizia respeito à greve de fome que teria feito, em 1980. Ele próprio confessou que tentara ludibriar os colegas: "Aí, quando decretaram greve de fome, eu até tentei guardar umas balinhas embaixo do travesseiro. O Djalma descobriu e jogou fora as minhas balinhas".
(p. 213)

Em agosto (de 2010), repetiria esse comportamento no caso de Sakineh Ashtiani, a iraniana condenada a 99 chibatadas e à morte por lapidação, acusada de adultério. Pressionado a tomar uma posição, Lula disse que não poderia passar o dia atendendo a pedidos e que as leis dos países deveriam ser respeitadas: "Um presidente da República não pode ficar na internet atendendo todo o pedido que alguém pede de outro país (...) É preciso tomar muito cuidado porque as pessoas têm leis, as pessoas têm regras. Se começarem a desobedecer as leis deles para atender o pedido de presidentes, daqui a pouco vira uma avacalhação." (p. 214)

A 29 de março (de 2010), em grande cerimônia, Lula lançou oficialmente o PAC2. Estiveram presentes trinta ministros, dezoito governadores e dezenas de parlamentares. Tudo mero pretexto para mais um ato de campanha da candidata oficial. O slogan da segunda etapa do programa era "o Brasil vai continuar crescendo".
Ironicamente, divulgou-se então o índice de crescimento do PIB em 2009, negativo em 0,9% no entanto - um quadro recessivo! (p. 215)

Estudo divulgado pela Fundação Getulio Vargas revelou que, entre 2002 e 2008, a soma de recursos desviados dos cofres federais teria chegado a R$ 40 bilhões. (p. 239)

De acordo com o Censo de 2010, 11,4 milhões de cidadãos viviam de forma precária, em áreas ocupadas irregularmente e com carência de erviços públicos. Representavam 6% dos brasileiros, equivalente à população de Portugal. O problema maior se concentrava nos grandes centros urbanos, sendo que o pior caso fora registrado em Belém, capital do pará, onde 54 % da população vivia em favelas. (p. 244)

Escutas telefônicas da Polícia Federal indicavam que a construtora Delta - desconhecida do grande público - pagava propinas ao governador petista Agnelo Queiroz para obter contratos de obras no Distrito Federal. O mediador das operações era o grupo liderado por Carlinhos Cachoeira.
A Delta tinha relações pouco republicanas, especialmente, com os governos do Rio de Janeiro (PMDB) e de Goiás (PSDB). Era a construtora com o maior número de contratos do PAC. (p. 251)

O fantasma do mensalão voltaria a ameaçar o PT. O ministro Gilmar Mendes, do STF, denunciou, em maio, que fora convidado para uma reunião no escritório do ex-presidente do Supremo, Nélson Jobim, onde estava presente Lula, que teria insinuado que era melhor adiar o julgamento para depois das eleições, e que, em troca, blindaria o ministro de uma possível ligação com Cachoeira e o senador Demóstenes Torres.
Gilmar Mendes rejeitou de imediato a tentativa de coação. E mais: denunciou publicamente o fato. Lula desmentiu. Nélson Jobim, nem isso. E o fato, gravíssimo, único na história da república, logo seria olvidado. (p. 255)

O PT era considerado uma novidade na política brasileira. A "novidade" daria vida nova às oligarquias. É muito difícil encontrar, nos últimos cinquenta anos, um período tão longo em que os velhos oligarcas tiveram tanto poder como o de agora. Usaram e abusaram dos recursos públicos e transformaram seus estados em domínios familiares perpétuos. (p. 272)


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