quinta-feira, 13 de outubro de 2016

As intrigas em torno dos manuscritos do Mar Morto - Michael Baigent e Richard Leigh (1994)

Em 74 d.C., a fortaleza de Massada, após resistir a prolongado sítio dos romanos, foi afinal conquistada, mas somente depois que os seus defensores se suicidaram em massa. Estes defensores em geral são reconhecidos como zelotes - não membros de uma seita religiosa, segundo as interpretações convencionais, mas partidários de um movimento político e militar. Contudo, como ficou preservado para a posteridade, a doutrina do grupo de defensores de Massada parecia ser a dos essênios - a seita supostamente não-violenta e de cunho místico que, acreditava-se, repudiava todas as formas de atividade política e, mais ainda, militar. (p. 16)

Bem no centro do quebra-cabeças, como viemos a descobrir, havia uma conexão até então desconhecida entre os Manuscritos do Mar Morto e a figura indefinível de São Tiago, irmão de Jesus, cuja disputa com Paulo precipitou a formulação da nova religião subsequentemente conhecida como cristianismo. Este elo havia sido escamoteado de forma cuidadosa por um pequeno enclave de estudiosos da Bíblia, cuja interpretação dos manuscritos, convenientemente ortodoxa, Eisenman veio a chamar de "consenso". (p. 18)

Este é o fenômeno explorado por Umberto Eco em O nome da rosa, onde o mosteiro e a biblioteca nele abrigada refletem o monopólio que a Igreja mantinha sobre a cultura da Idade Média, constituindo uma espécie de "sociedade fechada" ou "clube" exclusivo do conhecimento, acessível somente a uns poucos escolhidos - os poucos dispostos a se enquadrar na "diretriz oficial". (p. 19)

Todo o material havia sido colocado e arrumado numa única dependência, a "Sala dos Pergaminhos" e todo mundo tinha liberdade de percorrer o local e ver o andamento do trabalho dos colegas. Além disso, é claro que eles se ajudavam mutuamente nas questões que exigiam os conhecimentos especiais de algum dos membros. Mas isto também significava que, se qualquer um deles estivesse lidando com material controvertido ou explosivo, todos os outros ficariam sabendo. Baseando-se nisso, Allegro, até o fim de sua vida, insistiria que material importante e controvertido estava sendo retido, ou então tendo sua liberação retardada por seus colegas. Um outro estudioso independente, que entrou para o projeto mais tarde, informou que na década de 60 foi instruído a "ir com calma", a proceder de uma maneira deliberadamente confusa "de forma que os malucos se cansem e desistam". O que de Vaux queria, na medida do possível, era evitar embaraços à ordem cristã estabelecida. E uma parte do material de Qumran era sem dúvida considerada capaz de fazer exatamente isso. (p. 52)

A situação se tornou ainda mais absurda pelo fato de os israelenses, primeiro na Universidade Hebraica e depois no Santuário do Livro, criado especificamente para esse fim, possuírem sete importantes manuscritos - os três da compra original de Sukenik e quatro que Yigael Yadin conseguira adquirir em Nova York. Os israelenses parecem ter efetuado e publicado suas investigações de forma mais ou menos responsável - afinal, eles deviam prestar contas a Yadin e Biran, ao governo, à opinião pública e ao mundo acadêmico em geral. Já a equipe do Museu Rockefeller aparece numa luz bem menos favorável. Contando com recursos de substanciais dotações, com tempo, tranquilidade e liberdade de ação, dá a impressão de um clube exclusivo, uma elite autoproclamada, de caráter quase medieval em sua forma de tratar e de monopolizar o material. A "Sala dos Pergaminhos" onde se realizava o trabalho de pesquisa apresenta uma atmosfera quase monástica. Mais uma vez, nos vem à mente a exclusividade do conhecimento a que se agarravam os monges de O nome da rosa. E os "peritos" que tinham acesso à "Sala dos Pergaminhos" arrogavam-se tamanho poder e prestígio, que facilmente convenciam os que estavam de fora da justeza de sua atitude. (p. 53)

Entre outras coisas, os israelenses não estavam satisfeitos com a tendência de alguns membros da equipe internacional de representar o "senhorio ausente". por exemplo, desde a guerra de 1967, o padre Starcky se recusava a pôr os pés em território de Israel. O padre Milik, o mais íntimo confedente e protegido de de Vaux, mora já há muitos anos em Paris, com fotografias de algumas partes mais vitais dos manuscritos, às quais somente ele tem acesso. Ninguém mais tem permissão de tirar fotografias; sem o consentimento de Milik, ninguém, nem mesmo na equipe internacional, pode publicar o material sob sua custódia. Tanto quanto sabemos, desde a guerra de 1967, ele nunca voltou a Jerusalém para trabalhar com esse material. Ele é descrito como "esquisito" pelo Time Magazine. Outra publicação, Biblical Archaelogy Review (BAR), por duas vezes informou que ele se recusa a responder às cartas do Departamento de Antiguidades de Israel. Ele vem tratando tanto os demais estudiosos como o público em geral com o que só pode ser descrito como desdém. (p. 56)

No caso do material de Qumran, de Vaux e sua equipe nunca, até os dias de hoje, chegaram a apresentar qualquer tradução preliminar. Todo o acervo de Nag Hammadi estava impresso em onze anos. Estamos quase chegando a trinta e oito anos desde que a equipe de de Vaux começou seu trabalho e até agora só foram produzidos oito volumes - menos de vinte e cinco por cento do material em suas mãos. Além do mais, como veremos, do que foi impresso, muito pouco é material realmente importante. (p.59)

Apenas três dos integrantes da equipe originalmente reunida em 1953 ainda estão vivos. Jozef Milik, que abandonou o sacerdócio, como vimos, leva uma vida de recluso "esquivo" em Paris. Os professores John Strugnell e Frank Cross estavam na Escola de Teologia da Universidade de Harvard; dos dois, Cross mostrou-se mais acessível e até se deixou questionar a respeito dos atrasos na publicação. Em entrevista para The New York Times, admitiu que o progresso havia "em geral sido lento", apresentando duas explicações: a maioria dos integrantes da equipe, segundo ele, continuava a ocupar seus cargos de professor em tempo integral e só podia ir a Jerusalém para trabalhar em seu material durante as férias de verão; e os manuscritos que ainda não foram publicados, acrescentou, estão de tal maneira fragmentados que é muito difícil encaixar as várias peças, quanto mais traduzi-los. "Trata-se do mais fantástico jogo de quebra-cabeças do mundo", observou ele em outra ocasião. (p. 60)

Quanto à complexidade do quebra-cabeças, o próprio Cross contradisse seu argumento, já em 1958, ele havia escrito que a maior parte
dos fragmentos de manuscritos então nas mãos da equipe já haviam sido identificados - isto ocorrera, na verdade, no verão de 1956. Segundo escreveu John Allegro em 1964, a montagem e identificação de todo o material da Caverna 4 - o acervo mais numeroso - estavam "quase completas" em 1960/61. E a tarefa de identificar o material nem sempre foi tão difícil como Cross poderia levar a crer. Em carta a John Allegro, datada de 13 de dezembro de 1955, Strugnell escreveu que material da Caverna 4, no valor de 3.000 libras, havia recentemente sido adquirido (com recursos do vaticano) e identificado numa só tarde. As fotos de todo o material, dizia ele ainda, não levariam mais do que uma semana para ficarem prontas. (p. 61)

Ao tentar estabelecer a origem de toda a crença e prática religiosas, Allegro afirma que Jesus nunca existiu na realidade histórica, sendo apenas uma imagem evocada na psique sob a influência de uma droga alucinógena, a psilocibina, o componente ativo dos cogumelos alucinógenos. Com efeito, ele argumenta, o cristianismo, como todas as outras religiões, provém de uma espécie de experiência psicodélica, uma cerimônia de "rito de passagem" disseminada por um culto orgiástico do cogumelo mágico. (p. 84)

E atualmente já quase não se discute que drogas - psicodélicas ou de outros tipos - eram empregadas, ao menos até certo ponto, em religiões, cultos, seitas e escolas de mistérios do antigo Oriente Médio - como na verdade eram, e continuam a ser, em todo o mundo. Sem dúvida, não é inconcebível que tais substâncias fossem conhecidas, e talvez empregadas, no seio do judaísmo e do cristianismo primitivo do século I. (p. 85)

Allegro continuou a chamar a atenção do público para os atrasos na publicação dos manuscritos. Em 1987, um ano antes de sua morte, ele declarou que os atrasos da equipe internacional eram "patéticos e indesculpáveis", e acrescentou que seus antigos colegas durante anos "se aboletaram sobre o material que não só tem uma extraordinária importância, mas também se mostra profundamente sensível sob o ponto de vista religioso". (p. 86)

Em meados de 1989, o assunto havia se tornado cause célèbre em jornais americanos e israelenses e, em menor escala, também apareceu na imprensa britânica. Eisenman foi extensa e repetidamente citado pelo New York Times, Washington Post, Los Angeles Times, Chicago tribune, Time Magazine e Maclean"s Magazine do Canadá. Ele insistia em cinco pontos principais:
1. Que toda a pesquisa sobre os Manuscritos do Mar Morto estava sendo injustamente monopolizada por um pequeno enclave de estudiosos com interesses específicos e orientação tendenciosa.
2. Que apenas uma pequena porcentagem do material de Qumran estava conseguindo chegar à imprensa, sendo que a maior parte ainda continuava retida.
3. Que era ilusória a afirmação de que o grosso dos assim chamados textos"bíblicos" fora liberado, pois o material mais importante consistia dos assim chamados textos "da seita" - textos novos, nunca antes vistos, com grande significado para a história e a vida religiosa do século I.
4. Que após quarenta anos, o acesso aos manuscritos deveria ser liberado para todos os estudiosos interessados.
5. Que os documentos de Qumran fossem submetidos imediatamente a testes de AMS Carbono-14, com a monitoragem de laboratórios e pesquisadores independentes. (p. 106)

Oficialmente, é claro, os estudos a cargo da École Biblique deveriam ser não-confessionais, não partidários, imparciais e equilibrados. Ela apresentava ao mundo uma fachada de "objetividade científica", mas poderia mesmo se esperar "objetividade" de uma instituição dominicana, com fortes interesses católicos a proteger? "Minha fé não tem nada a temer de meus conhecimentos", declarou uma ocasião de Vaux a Edmund Wilson. Sem dúvida, não tinha, mas esta nunca foi de fato a questão real. A questão real era se seus conhecimentos e sua confiabilidade teriam algo a temer de sua fé. (p. 125)

Heinrich Schliemann (1822-90), alemão de nascimento e naturalizado cidadão americano em 1850, é considerado o "pai da moderna arqueologia". Desde a infância Schliemann demonstrara interesse apaixonado pela Ilíada e pela Odisséia de Homero; ele tinha a firme convicção de que esses épicos não eram "meras lendas", mas sim história mitificada, crônicas elevadas a um status legendário, talvez, mas ainda assim referindo-se a eventos, pessoas e lugares que haviam realmente existido outrora. A Guerra de Tróia, insistia Schliemann, para chacota e ceticismo de seus contemporâneos, fora um fato histórico; Tróia não era apenas o produto da imaginação do poeta - pelo contrário, tinha sido uma cidade "real" em seu tempo. A obra de Homero poderia servir como uma espécie de mapa, no qual podiam ser identificadas certas características geográficas e topográficas reconhecíveis. Era possível calcular as velocidades aproximadas das viagens na época e, a partir daí, avaliar a distância entre os lugares citados por Homero. Dessa forma, Schliemann concluiu, era possível refazer o itinerário da frota grega na Ilíada e localizar o real sítio histórico de Tróia. Após efetuar os cálculos necessários, ele estava firmemente convencido de ter encontrado "o X que determinava o local".
Tendo amealhado uma fortuna nos negócios, Schliemann embarcou no que seus contemporâneos consideravam um empreendimento quixotesco - efetuar uma escavação em grande escala no "X" que ele havia localizado. Em 1868, partiu para a Grécia e, usando como guia um poema escrito vinte e cinco séculos antes, começou a retraçar p suposto trajeto da frota grega; no que ele acreditava ser o ponto determinado, na Turquia, começou suas escavações. E para consternação, espanto e admiração do mundo, lá estava Tróia - ou, de qualquer forma, uma cidade que se ajustava ao relato de Homero. Na verdade, Schliemann encontrou várias cidades. Em quatro séries de escavações, ele descobriu nada menos do que nove, cada uma superposta às ruínas da que havia existido antes. Após este espetacular sucesso inicial, ele não se restringiu a Tróia. Alguns anos depois, entre 1874 e 1876, empreendeu escavações em Micenas, na Grécia, onde suas descobertas foram consideradas talvez ainda mais importantes do que as da Turquia. (p. 128/129)

Em 1860, Ernest Renan empreendeu uma jornada arqueológica na Palestina e Síria e, três anos depois, publicou seu famoso (ou notótio) livro La vie de Jésus, traduzido no ano seguinte para o inglês (The life of Jesus - A vida de Jesus), onde ele tentava desmistificar o cristianismo. Jesus era retratado com "um homem incomparável", mas tão-somente um homem - uma figura eminentemente mortal e não divina - e ele formulou uma hierarquia de valores que hoje em dia seria considerada uma forma de "humanismo secular". Renan não era um acadêmico obscuro nem um sensacionalista irresponsável; pelo contrário, era uma das mais estimadas e prestigiosas figuras intelectuais de seu tempo. Como consequência, sua A vida de Jesus provocou um dos maiores abalos na história do pensamento do século XIX. Tornou-se um dos seis livros mais vendidos de todo o século passado e desde então vem sendo sempre reeditado. Para as "classes instruídas" da época, Renan passou a ser um nome tão divulgado como Freud ou Jung são em nossos dias e, não existindo a televisão, foi provavelmente lido por um público muito mais amplo. (p. 132)

Assediada por investidas da ciência, da filosofia, das artes e das forças políticas seculares, Roma sofria seu maior abalo desde o início da Reforma luterana, três séculos e meio antes, e reagiu com uma série de medidas defensivas e desesperadas. Tentou - em vão, como transpirou - acordos políticos com poderes católicos, ou nominalmente católicos, como o Império dos Habsburgos. Em 18 de julho de 1870, após deliberação do Primeiro Concílio Vaticano, o Para Pio IX - descrito por Metternich como "de coração generoso, cabeça fraca e totalmente desprovido de bom senso" - promulgou o dogma da Infalibilidade Papal. E para fazer frente à devastação que vinha sendo feita nas escrituras por Renan e pelos estudiosos alemães da Bíblia, a Igreja começou a equipar seus próprios quadros com estudiosos meticulosos - "tropas de choque" da elite intelectual, que deveriam enfrentar os adversários do catolicismo em seu próprio campo. nascia assim o Movimento Católico Modernista.
O objetivo original dos Modernistas era usar as armas do rigor e da precisão da metodologia germânica, não para desafiar as escrituras, mas para defendê-las. Uma geração de religiosos especialistas foi laboriosamente treinada e preparada para dotar a Igreja de uma espécie de tropa de choque, um grupo com a função específica de defender a verdade literal das escrituras, com toda a artilharia pesada dos conhecimentos críticos mais recentes. (p. 133)

Em 1903, pouco antes de sua morte, o Papa Leão XIII criou a Comissão Bíblica Pontificial, para supervisionar e monitorar o trabalho dos estudos católicos das escrituras. Mais tarde, no mesmo ano, seu sucessor, Pio X, incluiu as obras de Loisy no Índex de livros proibidos da Inquisição. Em 1904, o novo Papa divulgou duas encíclicas opondo-se a todos os estudiosos que questionassem as origens e a história dos primórdios do cristianismo. Todos os professores católicos suspeitos de "tendências modernistas" foram sumariamente demitidos de seus postos. (p. 134)

Mas, na década de 1880, nada fazia prever este futuro. Entre os jovens clérigos modernistas daqueles anos existia uma credulidade e um otimismo ingênuos, uma convicção apaixonada que a pesquisa histórica e arqueológica metódica viria confirmar, e não desmentir, a verdade literal das escrituras. A École Biblique et Archéologique Française de Jerusalém - que mais tarde veio a dominar os estudos sobre os Manuscritos do Mar Morto - tinha suas raízes na primeira geração do Modernismo, antes de a Igreja compreender quão perto tinha estado de subverter a si mesma. A École surgiu em 1882, quando um monge dominicano francês em peregrinação a Jerusalém resolveu estabelecer ali uma comunidade dominicana, composta de uma igreja e um mosteiro; ele escolheu um local na estrada de Nablus, onde escavações haviam revelado os restos de uma igreja mais antiga, e que, segundo a tradição, era exatamente o lugar em que Santo Estêvâo, supostamente o primeiro mártir cristão, havia sido apedrejado até morrer. (p. 135)

Durante anos, a maioria dos estudiosos independentes não tinham qualquer noção de a École Biblique possuir um tal mandato divino, ou das pretensões do Vaticano a esse respeito. pelo contrário, a École parecia ser uma instituição acadêmica imparcial, dedicada, entre outras atribuições, a coletar, conferir, pesquisar, traduzir e explicar os Manuscritos do Mar Morto, e não a sonegá-los ou transformá-los em propaganda cristã. Assim, por exemplo, um estudioso ou pós-graduando na Inglaterra, nos Estados Unidos ou em qualquer outro lugar, tendo conquistado um certo renome acadêmico através de tese ou publicação em algum campo dos estudos bíblicos, poderia se candidatar ao acesso ao material de Qumran; não haveria motivo para esperar uma recusa - seria de presumir que os manuscritos estivessem disponíveis para estudo por quem quer que tivesse adquirido credenciais acadêmicas legítimas. Porém, em todos os casos de que temos conhecimento, os pedidos de acesso foram sumariamente negados, sem justificativa ou explicação - e acompanhados de inevitável insinuação de que o próprio candidato de alguma forma era inadequado.
Para dar apenas um exemplo, vejamos o caso do professor Norman Golb, da Universidade de Chicago. Sua tese de doutorado fora sobre Qumran e material associado a Qumran encontrado no Cairo. Tendo acumulado anos de experiência na área, ele se dedicou a um projeto de pesquisa para conferir a datação paleográfica dos manuscritos, que havia sido estabelecida pelo professor Cross, da equipe internacional, e que Golb julgava poder ser aprimorada. Para confirmar sua tese, ele naturalmente tinha necessidade de ver certos textos originais - reproduções fotográficas, por motivos óbvios, não seriam suficientes. Em 1970, estando em Jerusalém, ele escreveu a deVaux, na época chefe da École Biblique e da equipe internacional, solicitando o acesso e explicando que necessitava ver o material para validar um projeto de pesquisa a que ele dedicara anos de sua vida. Três dias depois, de Vaux respondeu afirmando que não poderia conceder acesso a qualquer material sem "a expressa permissão do estudioso encarregado de sua edição". O estudioso em questão era o então padre Milik que, como de Vaux sabia muito bem, não estava disposto a deixar ninguém ver nada. Depois de todo o esforço e tempo investidos em seu projeto, Golb se viu obrigado a abandoná-lo. "A partir daí", ele nos disse, "tive boas razões para duvidar de todas as datações de textos feitas por Cross, com base na paleografia".
Por outro lado, fragmentos do material de Qumran estarão à disposição de pesquisadores afiliados à própria École, de jovens bolsistas e protegidos da equipe internacional, de estudantes de pós-graduação sob a tutela de um ou outro membro da equipe, os quais certamente não se afastarão da "diretriz" oficial. Assim, por exemplo, Eugene Ulrich, da Universidade de Notre Dame, estudante sob a orientação de Cross, "herdou" o material dos pergaminhos originalmente a cargo do padre Patrick Skehan. Ao que parece, ele também herdou algo da atitude de Skehan para com os outros estudiosos: perguntado por que não se poderiam lançar edições com reproduções fotográficas, ele respondeu que "a vasta maioria dos que irão usar tais edições - entre os quais professores universitários em geral - mal tem capacidade de julgar de forma competente textos difíceis". (p. 139-140)

Até hoje, a Comissão Pontificial continua a supervisionar e a monitorar todos os estudos bíblicos conduzidos sob os auspícios da Igreja católica, e publica decretos oficiais sobre "a forma correta de se ensinar... as escrituras". Em 1907, o Papa Pio X tornou obrigatória a obediência a tais decretos. Assim, por exemplo, a Comissão "estabeleceu" por decreto que Moisés foi o autor literal do Pentateuco. Em 1909, um decreto semelhante afirmava a exatidão literal e histórica dos três primeiros capítulos do Gênesis. Mais recentemente, em 21 de abril de 1964, a Comissão promulgou um decreto regulando os estudos bíblicos em geral e, mais especificamente, a "verdade histórica dos Evangelhos". O decreto era quase inequívoco afirmando que "o intérprete deve sempre abrigar um espírito de pronta obediência à autoridade da doutrina da Igreja", declarava ainda que todos os responsáveis por quaisquer "associações bíblicas" são obrigados a "observar inviolavelmente as leis promulgadas pela Comissão Bíblica Pontificial". (p. 144)

O atual chefe da Comissão Bíblica Pontificial é o cardeal Joseph Ratzinger, que também está à frete de outra instituição católica, a Congregação para a Doutrina da Fé. Esta designação é razoavelmente nova, datando de 1965, e é provável que a maioria dos leigos a desconheça; mas a instituição propriamente dita tem um pedigree de longa data. Na verdade, ela tem atrás de si uma história singular e ressoante que remonta ao século XIII. Em 1542. sua denominação oficial passou a ser o Santo Ofício e, antes disso, era conhecida como a Santa Inquisição. O cardeal Ratzinger, na verdade, é o Grande Inquisidor da Igreja em nossos dias. (p. 144)

Em maio de 1990 a Congregação para a Doutrina da fé divulgou um esboço preliminar do novo, revisado e atualizado "Catecismo Universal da Igreja Católica" - a enunciação oficial dos princípios em que todos os católicos são formalmente obrigados a acreditar. Não dando margem a qualquer flexibilidade, o novo "catecismo" condena de forma definitiva, além de uma relação de outras coisas, o divórcio, o homossexualismo, a masturbação e as relações sexuais antes ou fora do casamento. Estabelece, como princípios básicos da fé cristã, a infalibilidade papal, a Imaculada Conceição e a Assunção da Virgem Maria, assim como a "Autoridade Universal da Igreja Católica". Em passagem particularmente dogmática, o novo "Catecismo" declara que "a tarefa de dar uma interpretação autêntica da Palavra de Deus ... foi confiada exclusivamente ao grupo existente do magistério da Igreja". (p. 148)

Ps Manuscritos do Mar Morto não são artigos de fé, mas documentos de importância histórica e arqueológica, que não pertencem propriamente à Igreja Católica, mas à humanidade como um todo. E é muito sério e profundamente perturbador pensar que, se o cardeal Ratzinger conseguir impor sua vontade, tudo o que viermos a conhecer sobre os textos de Qumran estará sujeito ao mecanismo censor da Congregação para a Doutrina da Fé - isto é, será na verdade filtrado e cortado para nós pela Inquisição. (p. 149)

Paulo, na verdade, põe Deus de lado e institui, pela primeira vez, o culto à Jesus - como uma espécie de equivalente a Adônis, Tamuz, Átis ou a qualquer um dos deuses mortos e ressuscitados que povoavam o oriente Médio naquele tempo. E para poder competir com esses rivais, jesus tinha que se equipar a eles ponto por ponto, milagre por milagre. É nessa fase que se juntam à biografia de Jesus muitos dos elementos miraculosos, incluindo, com toda probabilidade, seu suposto nascimento de uma virgem e sua ressurreição dos mortos. Trata-se, em essência, de invenções de Paulo, via de regra em total discrepância com a doutrina "pura" promulgada por Tiago e o restante da comunidade de Jerusalém. portanto, não é nada surpreendente que Tiago e seu grupo se incomodassem com as ações de Paulo. (p. 207)

Se Tiago desempenhou um papel tão importante nos eventos daquele tempo, por que sabemos tão pouco sobre ele? Por que foi relegado à condição de figura apagada de sengo plano? As respostas a essas perguntas são bastante simples. Eisenman ressalta que Tiago, tenha ele sido literalmente seu irmão ou não, conheceu Jesus em pessoa, o que não aconteceu com Paulo. Em seus ensinamentos, Tiago sem dúvida estava mais perto "da fonte" do que Paulo jamais esteve. Seus objetivos e preocupações com frequência diferiam dos de Paulo - e por vezes eram até diametralmente opostos. Assim, para Paulo, Tiago teria sido um motivo de irritação constante. Por conseguinte, com o triunfo do cristianismo paulino, a importância de Tiago, se não podia ser apagada de todo, no mínimo teria que ser diminuída. (p. 213)

Do bastião do sacerdócio, os macabeus propagaram a Lei com uma ferocidade fundamentalista. Eles costumavam invocar a lenda da "Aliança de Finéias", que aparece no Livro dos Números do Antigo Testamento. Finéias era sacerdote e neto de Aarão, ativo após os hebreus terem fugido do Egito, liderados por Moisés, e se estabelecido na Palestina. Pouco tempo depois, deu-se uma praga que provocou grande devastação. Finéias se volta para um determinado homem, que havia tomado por esposa uma estrangeira pagã, e, pegando uma lança, atravessa o casal de um só golpe. Nesse ponto, Deus declara que Finéias é o único a "possuir o meu zelo" e celebra com ele uma aliança. Daquele dia em diante, como recompensa por seu zelo para com seu Deus (1 Mc. 2,54), Finéias e seus descendentes serão os detentores perpétuos do sacerdócio.
Esta era a figura para a qual os macabeus se voltavam como "modelo". Como Finéias, eles condenavam todas as relações, quaisquer que fossem, com pagãos e estrangeiros. Como Finéias, eles insistiram no "zelo pela Lei" e procuravam encarná-lo. Tal "antagonismo xenófobo" aos costumes estrangeiros, a esposas estrangeiras, etc. se transmitiria como um legado e "ao que parece, teria sido característico de toda a orientação dos zelotes/zadoqueus". (p. 228)

Como no tempo de Matatias macabeu, tal situação inevitavelmente teria de provocar uma reação. Se os sacerdotes títeres de Herodes se tornaram os "saduceus" da tradição popular, seus adversários - os "puristas" que ainda se mantinham "zelosos da Lei" - se tornaram conhecidos na história sob uma variedade de nomes diferentes. Em certos contextos - a literatura de Qumran, por exemplo - estes adversários eram chamados de "zadoqueus" ou "filhos de Zadok". No Novo Testamento, eram chamados de "nazorenos" - e após, "cristãos primitivos". Em Josefo, eram denominados "zelotes" e "sicários". Os romanos, evidentemente, os consideravam "terroristas", "foras-da-lei" e "bandidos". Na terminologia moderna, talvez fossem chamados de "fundamentalistas messiânicos revolucionários". (p. 229)














Nenhum comentário:

Postar um comentário