terça-feira, 7 de novembro de 2017

Esquerda Caviar: a hipocrisia dos artistas e intelectuais progressistas no Brasil e no mundo - Rodrigo Constantino (2014)

Típico da esquerda caviar é ter a memória bastante seletiva, não recordar das bandeiras e dos ídolos defendidos no passado que se mostraram terríveis com o tempo. (p. 15)

Quem dava a devida importância aos artistas como instrumentos de propaganda comunista era o próprio ditador Lênin. Ele chegou a afirmar que, "de todas as artes, para nós a mais importante é o cinema". Grigori Zinoviev, líder do Comintern, declarou que os filmes podem e devem se tornar uma poderosa arma da propaganda comunista. (p. 15)

NÃO DEVEMOS CONFUNDIR A ADMIRAÇÃO À OBRA DO ARTISTA COM SUA PRÓPRIA PESSOA OU SUAS IDEIAS POLÍTICAS.
Podemos respeitar ao até idolatrar certo músico, sem que isso signifique que suas ideias políticas devam ser também aceitas. Podemos ter ojeriza à conduta hipócrita de um famoso arquiteto, e ainda assim reconhecer sua importância em seu campo de trabalho. Podemos aplaudir de pé um excelente ator, e logo depois vomitar com seu discurso boboca. (p. 16)

O que será atacado neste livro é a visão ideológica dos artistas e intelectuais da esquerda caviar, assim como suas contradições entre discurso e prática. Não vem ao caso nem é do meu interesse criticar suas obras artísticas ou científicas. Como disse Thomas Sowell em Intellectuals and Society: "O passo em falso fatal de tais intelectuais é assumir que a capacidade superior dentro de um campo particular pode ser generalizada como sabedoria ou moralidade superiores sobre tudo". (p. 17)

Queremos igualdade material, mas não mexam nos meus milhões no banco! Os ricos devem pagar mais impostos, mas quero algum jeito de reduzir os meus! Todos são iguais, mas uns mais iguais que os outros! Socialismo sim, mas não para mim!
O embaixador José Osvaldo de Meira Penna certa vez disse: "Os marxistas inteligentes são patifes; os marxistas honestos são burros; e os inteligentes e honestos nunca são marxistas". (p. 22)

Pregar o socialismo pode ser uma tarefa bastante lucrativa no mercado, assim como vender consolo e autoajuda para perdedores. Thomas Sowell disse: "Quando você quer ajudar as pessoas, você diz a verdade a elas; quando você quer se ajudar, você diz a elas aquilo que querem escutar". (p. 22)

A cantora Ivete Sangalo foi convidada e aceitou, no começo de 2013, realizar um show na inauguração de um hospital público em Sobral, no Ceará. O cachê acertado causou polêmica. O governador Cid Gomes, irmão de Ciro Gomes, combinou pagar nada menos do que R$ 650 mil pelo show. Para piorar a situação, a marquise do hospital desabou apenas um mês após sua inauguração! (p. 24)

Todo socialista simplesmente adora dinheiro. Podem falar o contrário, mas, assim que a oportunidade se apresenta, mostra-se o mais ganancioso. O melhor exemplo? O Parlamento da China comunista possui a maior quantidade de bilionários de todos. São Mais de 80 ao todo. Não há nada parecido no capitalista Estados Unidos. (p. 28)


quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Terapia para homossexualidade, é possível ou não?

No conto História do Saci-pererê de Monteiro Lobato, tio Barnabé explica à Pedrinho como capturar um saci e mantê-lo dentro de uma garrafa. Porém, tio Barnabé adverte: "Saci na garrafa é invisível".
Eu posso te dizer que tenho um demônio preso em uma garrafa. Desconfiado, você me pede para vê-lo. Eu mostro uma garrafa parda, que não permite visão do seu interior. Você me pergunta, então, como poderia ver o tal demônio. Eu te digo que somente abrindo a garrafa, mas não posso fazê-lo, pois o demônio escaparia.
Há muito tempo atrás, acreditava-se que a Terra ficava imóvel no centro do Universo, e que o Sol, os planetas e as estrelas giravam ao seu redor. Essa hipótese da Terra como centro do Universo constava na Bíblia e, por isso, ninguém ousava duvidar. O astrônomo polonês Nicolau Copérnico (1473-1543) imaginou um outro modelo de Universo, no qual o Sol estava no centro e os planetas, incluindo a Terra, giravam ao seu redor. Porém, advertido que não se intrometesse em assuntos religiosos, Copérnico não conseguiu provar sua teoria.
Algum tempo depois, Galileu Galilei (1564-1642) aperfeiçoou uma luneta, instrumento que fora inventado na Holanda, criando, assim, o telescópio. Com o telescópio, ele pode verificar que Copérnico estava certo, e alardeou sua descoberta. Embora repreendido pela Igreja, em 1616, de que sua teoria seria herética, Galileu escreveu Diálogo sobre os dois principais sistemas do mundo, livro no qual defendeu o sistema heliocêntrico e que foi publicado em 1632. O papa Urbano VIII, então, convocou-o a prestar declarações a respeito de sua teoria e de sua obra. Após julgado pela inquisição, sua pena foi abjurar publicamente às suas ideias e prisão por tempo indefinido, e sua obra foi incluída no Index (lista de livros proibidos).
Em 22 de março de 1999, o Conselho Federal de Psicologia instituiu a resolução 1/99 que define como os profissionais psicólogos devem lidar com pacientes homossexuais. Segue abaixo teor da resolução:
O parágrafo único do artigo terceiro da citada resolução veda ao psicólogo a participação, inclusive, em pesquisas a respeito.
Recentemente, o juiz Waldemar Cláudio de Carvalho emitiu sentença na qual não suspende os efeitos gerais da regulamentação do conselho, somente determina que deve ser facultado aos profissionais interessados a possibilidade de pesquisar o tema ou atender os pacientes que os procurarem buscando a chamada reorientação sexual. Apresento abaixo a parte da sentença que discorda da resolução 1/99 do CFP:
A sentença provocou uma onda de indignação relacionada às palavras doença e cura, palavras que não aparecem na sentença do juiz, diga-se de passagem. Quero crer que as pessoas que se envolveram nisso eram inocentes desavisados, pessoas que simplesmente repercutiram algo sem verificar sua veracidade.
O que tudo isso tem a ver com o Saci-pererê, Copérnico e Galileu?
Afirmar algo e não permitir estudos a respeito do assunto é como dizer que você tem um Saci na garrafa, mas não pode mostrá-lo. Especialmente para uma profissão que está dentro do escopo das ciências humanas.
Proibir estudos a respeito de um tema é o que fez a Igreja com Copérnico e Galileu, por medo de ser desmentida. Se a Psicologia afirma que não há reorientação sexual, deixe que os estudos sejam feitos e que falhem, reforçando ainda mais a sua teria.
Ainda, ao proibir a terapia de reorientação e as pesquisas a respeito da mesma, o CFP fere o princípio da autonomia, dentro da bioética, que determina que os indivíduos capacitados de deliberarem sobre suas escolhas pessoais, devam ser tratados com respeito pelas sua capacidade de decisão. Ou seja, as pessoas têm o direito de decidir sobre quais tratamentos e terapias serão usadas para resolver questões relacionadas ao seu corpo e à sua saúde.
Porém, sob a vigência da resolução 1/99 do CFP, uma indivíduo que solicite um tratamento de reorientação não poderá recebê-lo, pois o profissional que o fizer terá seu registro cassado. Isso lembra algo sobre Galileu?
O que o juiz fez nada mais é do que derrubar uma determinação autoritária, por parte do CFP, e garantir a liberdade individual do paciente.
Gostaria de acrescentar que causa-me espanto que um órgão que não se pronunciou a respeito de uma exposição iniciada em Porto Alegre na qual encontravam-se cenas explícitas de pedofilia e de zoofilia, exposição esta onde crianças foram levadas por excursões escolares sem a notificação aos pais sobre seu teor, dê início a uma onda de indignação a respeito de assunto bem mais leve.
Eu posso garantir que não precisam se preocupar: Mesmo após essa sentença, nenhuma escola irá organizar uma excursão para levar seu filho ao psicólogo e expô-lo à qualquer terapia de reorganização sexual. 
E qual é a resposta para a pergunta do título? Sem estudos não é possível responder...

domingo, 3 de setembro de 2017

Década perdida - Dez anos de PT no poder - Marco Antonio Villa (2014)

São anos marcados pela hipocrisia. Não há mais ideologia. Longe disso. A disputa política é pelo poder, que tudo pode e no qual nada é proibido. O Brasil de hoje é uma sociedade invertebrada. Amorfa, passiva, sem capacidade de reação. É uma República bufa, uma República petista. (p. 8)

Para demonstrar que ainda representava o papel de socialista - quatro anos depois, em entrevista declararia: "nunca fui de esquerda" -, Lula compareceu ao Fórum Social Mundial, em Porto Alegre. Discursou entusiasticamente. mas, em seguida, viajou à Suíça, onde participaria do Fórum Econômico Mundial, em Davos. (p. 26)

Foi a 14 de janeiro de 2003. Seria então apresentado ao publicitário mineiro por José Dirceu: "Presidente, este aqui é o Marcos Valério, um publicitário lá de Minas que está ajudando a gente naquele negócio das dívidas do PT".
Valério "ajudou" o PT. Uma semana depois, o banco Rural depositaria R$ 10 milhões na conta do partido. No mesmo dia, foram depositados quase R$ 100 mil na conta da empresa do segurança pessoal de Lula, Freud Godoy, dinheiro destinado a pagar as despesas de Lula com o translado de parentes e amigos para a posse.
Valério intermediou - para suas empresas de publicidade e para os bancos Rural e BMG - negócios "privilegiados" com o governo. Bastaria citar, por exemplo, a concessão feita por Lula, a 17 de setembro de 2003, ao BMG, que deteve a exclusividade, por três meses, da oferta de empréstimos consignados aos funcionários públicos federais, que alcançariam, no período, a soma de R$ 3 bilhões. O faturamento do banco cresceu repentinamente: mais de 200%. A próspera sociedade entre o publicitário e a alta direção petista prolongar-se-ia por mais de dois anos ainda, interrompida somente após as denúncias do deputado Roberto Jefferson, em maio de 2005. (p. 27)

O mês de junho (de 2003) seria marcado pela polêmica reforma da Previdência, a emenda constitucional nº 41. Os principais pontos consistiam na taxação dos servidores inativos da União e dos estados, no aumento da idade mínima para aposentadoria (homens, sessenta anos; mulheres, 55), na exigência de no mínimo vinte anos de serviço público para que o funcionário pudesse aposentar-se, na limitação da aposentadoria do funcionário público ao teto do INSS, à época de R$ 2.400, e num valor máximo de proventos tanto para os ativos como para os inativos. (p. 34)

Na primeira semana de julho (de 2003), o governo tomou uma importante decisão: a de unificar os programas assistenciais. As "bolsas", até então espalhadas, seriam reunidas. Como Benedita da Silva não mostrara aptidão para exercer suas atribuições na Secretaria Especial da Assistência e Promoção Social, que tinha status de ministério, o responsável inicial por dar os primeiros passos na centralização dos programas foi o todo-poderoso José Dirceu. Era o início do Bolsa-Família - denominação criada pelo publicitário Duda Mendonça. (p. 38)

A Funasa (Fundação Nacional de Saúde), vinculada ao Ministério da Saúde, sempre foi desejada pelos corruptos devido aos recursos fabulosos que movimenta. Em 2000, em decreto definira que os coordenadores regionais da fundação deveriam ser funcionários de carreira, com pelo menos cinco anos de experiência em cargos de direção. Os petistas mudariam isso. Afinal, o decreto dificultava o aparelhamento da Funasa. Tinham razão. E como superam o obstáculo? Incluíram um "preferencialmente" ao texto. Ou seja, o indicado deveria ser preferencialmente - e não necessariamente, como antes - um funcionário de carreira com mais de cinco anos em cargos de direção. Aquele acréscimo retirava o caráter terminativo do decreto anterior. E isso se repetiria em toda máquina estatal.
O caso do Instituto Nacional do Câncer (Inca) viraria referência para o estilo petista de aparelhamento do Estado. Conhecido pela excelência no combate ao câncer, o Inca seria entregue, sob a gestão do PT, a uma senhora cuja experiência anterior consistia na direção de parques e jardins da prefeitura carioca. No hospital, portanto, faltava de tudo: remédios, material de limpeza, equipamentos. Mas não faltavam petistas em todos os postos de confiança. (p. 43)

O mês de outubro (de 2003) terminaria com nova denúncia. Em dez meses, Lula gastara, com viagens e diárias, o dobro que Fernando Henrique no mesmo período de governo: quase R$ 20 milhões. (p. 46)

Abril (de 2004) seria marcado por uma série de invasões do MST, mobilização que o grupo chamou de "abril vermelho". Os sem-terra reivindicavam a intensificação da reforma agrária. No ano anterior, 36 mil famílias haviam sido assentadas, e Lula prometera multiplicar o número por quatro em 2004. Até então, porém, pouco mais de 10 mil tinham sido contempladas.
Curiosamente, entre 1998-2001, durante o segundo governo FHC, a média fora de 95 mil família assentadas por ano. (p. 65)

A proposta de aumento do salário mínimo, tradicionalmente anunciada às vésperas do 1º de maio, desagradou algumas lideranças petistas. Um acréscimo de apenas R$ 20, o que o levava a R$ 260 - valor que a Câmara acataria, com 266 votos favoráveis e 166 contrários.
O PFL, porém, propunha R$ 275. Cinco deputados petistas e três do PC do B votaram com a oposição - a parte vencida. Mas o Senado derrubaria a decisão da Câmara e aprovaria o salário mínimo de R$ 275, derrotando o governo.
A proposta de R$ 260 só sairia vencedora nove semanas depois, a 23 de junho. (p. 67)

Ocorridos às vésperas da eleição o episódio do dossiê - "um tiro no pé", como o classificara - e a consequente prisão dos "aloprados" prejudicaram Lula na reta final do primeiro turno. Da mesma forma, a ausência no debate eleitoral patrocinado pela Rede Globo também o atrapalhara.
Nas semanas que antecederam a nova votação, porém, encampou um tom agressivo, mantendo-se sempre na ofensiva, e fez uma campanha em que resgatava temas que deixara de lado durante o mandato, como a defesa da presença estatal na economia, o que colocaria o candidato tucano nas cordas, uma vez que imputava a Alckmin bandeiras que o governador paulista jamais defendera - como a privatização da Petrobrás. A estratégia se mostraria um sucesso.
No segundo turno da eleição presidencial, Geraldo Alckmin obteve 37.543.178 votos - quase dois milhões e meio a menos do que no primeiro, um caso singular. Lula, de sua parte, aumentou seus votos em 12 milhões, o que significava 60,87%. (p. 138)

Um fato importante - e que marcaria o segundo mandato de Lula - foi a designação de Franklin Martins para a Secretaria de Comunicação Social. O jornalista tinha uma longa carreira política, iniciada no MR-8, e fora um dos participantes do sequestro do embaixador americano Charles Elbrick.
Trabalhava, então, na Rede Globo. Conhecia as entranhas do poder brasiliense. Sabia, como poucos, construir uma relação - favorável ao governo - com a mídia. E acabaria se transformando, como no clássico de George Orwell, no ministro da verdade de Lula.
Antes dele, havia uma tímida política de apoio governamental à imprensa chapa-branca. Já era dada atenção especial aos veículos de comunicação - incluindo internet e blogs - que apoiavam o PT. Mas só com Franklin a máquina seria profissionalizada, azeitada e ampliada.
Através de "patrocínios" do governo federal e de empresas estatais, milhões de reais foram destinados aos apoiadores do petismo, e se organizou, como nunca na história do Brasil, uma rede eficaz de propaganda dos êxitos - reais ou não -  da administração de Lula. Aos críticos do lulismo - transformados não em adversários, mas em inimigos - reservou-se o epíteto de membros do "partido da imprensa golpista". (p. 151)

Entre 2003 e 2006, o governo transferiu R$ 72 milhões para as centrais sindicais. Nunca os sindicalistas tiveram tanto dinheiro e poder. Formaram, desde então, a aristocracia sindical, dependente financeiramente e servil politicamente ao Estado. (p. 152)

Em outra frente, as operações da Polícia Federal, sempre realizadas com ampla cobertura da imprensa, aparentemente orientadas para o combate à corrupção, acabaram atingindo o governo, direta ou indiretamente. (p. 154)

A Operação Navalha, deflagrada em 17 de maio, prenderia 46 suspeitos em nove estados, acusados de integrar uma quadrilha especializada em desviar recursos públicos. Segundo a denúncia, a construtora Gautama seria a principal articuladora do esquema de corrupção. Vários políticos e empresários foram detidos. (p. 154)

Duas semanas depois, nova operação da PF, agora contra a máfia dos caça-níqueis, alcançaria um dos irmãos de Lula, Genival Inácio da Silva, o Vavá. Ele tentara favorecer, por meio de tráfico de influência, empresários que tinham negócios com o governo, e ficaria conhecido pela frase pronunciada ao pedir propina: "Ô, arruma dois pau pra eu". (p. 154)

A sucessão de escândalos atingiria, ainda em maio (de 2007), o presidente do Senado Renan Calheiros. Descobriu-se que um lobista da construtora Mendes Júnior pagava o aluguel e uma pensão mensal para a jornalista Mônica Veloso, que tivera uma filha com o senador. (p. 155)

A todo momento, ao longo de seus oito anos de governo, Lula faria referência aos tempos de operário, sempre exagerando ou mentindo, sem qualquer pudor, a respeito. Chegou a dizer que "tinha ficado 27 anos no chão de fábrica". Mentira.
Segundo sua biógrafa oficial, ele começara a trabalhar, depois de formado no SENAI, em 1963, e deixou o "chão da fábrica" - no caso, a Villares - em 1972. Portanto, trabalhou nove anos , e não 27! (p. 162)

O PMDB passara a ocupar cargos importantes no governo e detinha seis ministérios. Em 2003, no início da primeira Presidência de Lula, o partido ficara sem qualquer pasta. Em 2005, entretanto, já ocupava três. Aquela escalada era uma das peças da estratégia de Lula para amarrar o PMDB com vistas à sucessão presidencial em 2010. Como de hábito, o presidente pensava mais no projeto de poder do PT - e no se, destacadamente - do que na administração pública. (p. 168)

Mas, quem era Dilma Rousseff?
Ela seria notada no mundo político apenas em 2002 - e somente no final do ano, após a eleição de Lula. Nos anos de regime militar, atuou em grupos de luta armada, sem contudo se destacar entre as lideranças. Tinha um passado no PDT. Fizera política no Rio Grande do Sul, no entanto exercendo funções pouco expressivas. Tentara cursar pós-graduação em economia na Unicamp, mas sem sucesso: não conseguiu sequer fazer um simples exame de qualificação de mestrado. Mesmo assim, durante anos foi apresentada como "doutora" em economia. Quis também se aventurar no mundo dos negócios. Abriu então, em Porto Alegre, uma lojinha de mercadorias populares, conhecida como "de 1,99". Novamente, entretanto, fracassaria - logo tendo de fechar as portas. Caminharia para a obscuridade se vivesse num país politicamente sério. Porém, para sorte dela, nascera no Brasil; de modo que, depois de tantos tombos, seria premiada: virou ministra de Minas e Energia. (p. 172)

O próximo passo marqueteiro do governo consistiria em transformar uma parte dos consumidores de baixa renda, então em processo de ascensão social, em uma nova categoria: a classe C. Assim, da noite para o dia, a classe média era inchada com mais de 20 milhões de pessoas, como se fosse possível uma revolução econômica em tão curto espaço de tempo. (p. 173)

As reservas, em setembro (de 2008), estavam em US$ 206 bilhões - o que permitiu ao país resistir às pressões especulativas contra o real. Os gastos públicos em quatro anos, porém, tinha aumentado 38%, enquanto o PIB, no mesmo período, crescera 20% - o que não era bom do ponto de vista econômico. (p. 180)

No Brasil, a fuga de dólares em 2008 fora de US$ 48,9 bilhões, o equivalente a 25% das reservas em moeda estrangeira - a maior retirada desde 1982. Ao contrário do que ocorrera nos anos anteriores, desta vez a balança comercial não ajudou a compensar a corrida dos dólares.
Em outubro de 2008, a produção industrial brasileira caíra 1,4% em relação a setembro. No mês seguinte, a queda fora de 7,2%; e, em dezembro, chegaria a 12,4% - a maior retração desde o início da série histórica do IBGE, em 1991. A crise freou o PIB em 3,6% no último trimestre de 2008, assinalando o mais fraco desempenho econômico desde o Plano Real.
A comparação com outros países mostraria que o Brasil estava entre os mais atingidos pelo desarranjo global, uma situação muito distinta daquela que o governo vinha insistentemente propagandeando. (p. 187)

Em julho (de 2009), o Brasil fechou um novo acordo com o Paraguai sobre o uso e o pagamento da energia gerada pela usina de Itaipu. O país pagava anualmente ao vizinho US$ 120 milhões. O presidente paraguaio Fernando Lugo, porém, vinha exigindo um aumento neste valor. O oferecimento de Lula, contudo, superaria sua expectativa mais otimista: US$ 360 milhões! ou seja: pelo mesmo volume de energia o triplo do preço.
O presidente brasileiro consideraria aquela uma decisão histórica. E foi mesmo: mas para o Paraguai. Não satisfeito, o governo do Brasil ainda concedeu um empréstimo de US$ 450 milhões para a construção de uma linha de transmissão da usina até Assunção. (p. 195)

A visita a Cuba, em março (de 2010) a quarta de Lula como presidente da República, mais uma vez colocava em tela a questão dos direitos humanos. Na ilha, dominada pela família Castro há meio século, alguns presos políticos encontravam-se então em greve de fome. Em fevereiro, após 85 dias sem comer, Orlando Zapata morrera. Não fora o primeiro. Lula, porém desqualificaria a resistência: "Lamento profundamente que uma pessoa se deixe morrer por fazer uma greve de fome. Vocês sabem que sou contra, porque fiz greve de fome". E concluiria: "Imagine se todos os bandidos que estão presos em São Paulo entrarem em greve de fome e pedirem liberdade".
O presidente, que mentia, cometeria dois graves erros. A greve de fome dos cubanos era de prisioneiros políticos condenados por uma ditadura quando defendiam as liberdades democráticas - este, o primeiro. O segundo dizia respeito à greve de fome que teria feito, em 1980. Ele próprio confessou que tentara ludibriar os colegas: "Aí, quando decretaram greve de fome, eu até tentei guardar umas balinhas embaixo do travesseiro. O Djalma descobriu e jogou fora as minhas balinhas".
(p. 213)

Em agosto (de 2010), repetiria esse comportamento no caso de Sakineh Ashtiani, a iraniana condenada a 99 chibatadas e à morte por lapidação, acusada de adultério. Pressionado a tomar uma posição, Lula disse que não poderia passar o dia atendendo a pedidos e que as leis dos países deveriam ser respeitadas: "Um presidente da República não pode ficar na internet atendendo todo o pedido que alguém pede de outro país (...) É preciso tomar muito cuidado porque as pessoas têm leis, as pessoas têm regras. Se começarem a desobedecer as leis deles para atender o pedido de presidentes, daqui a pouco vira uma avacalhação." (p. 214)

A 29 de março (de 2010), em grande cerimônia, Lula lançou oficialmente o PAC2. Estiveram presentes trinta ministros, dezoito governadores e dezenas de parlamentares. Tudo mero pretexto para mais um ato de campanha da candidata oficial. O slogan da segunda etapa do programa era "o Brasil vai continuar crescendo".
Ironicamente, divulgou-se então o índice de crescimento do PIB em 2009, negativo em 0,9% no entanto - um quadro recessivo! (p. 215)

Estudo divulgado pela Fundação Getulio Vargas revelou que, entre 2002 e 2008, a soma de recursos desviados dos cofres federais teria chegado a R$ 40 bilhões. (p. 239)

De acordo com o Censo de 2010, 11,4 milhões de cidadãos viviam de forma precária, em áreas ocupadas irregularmente e com carência de erviços públicos. Representavam 6% dos brasileiros, equivalente à população de Portugal. O problema maior se concentrava nos grandes centros urbanos, sendo que o pior caso fora registrado em Belém, capital do pará, onde 54 % da população vivia em favelas. (p. 244)

Escutas telefônicas da Polícia Federal indicavam que a construtora Delta - desconhecida do grande público - pagava propinas ao governador petista Agnelo Queiroz para obter contratos de obras no Distrito Federal. O mediador das operações era o grupo liderado por Carlinhos Cachoeira.
A Delta tinha relações pouco republicanas, especialmente, com os governos do Rio de Janeiro (PMDB) e de Goiás (PSDB). Era a construtora com o maior número de contratos do PAC. (p. 251)

O fantasma do mensalão voltaria a ameaçar o PT. O ministro Gilmar Mendes, do STF, denunciou, em maio, que fora convidado para uma reunião no escritório do ex-presidente do Supremo, Nélson Jobim, onde estava presente Lula, que teria insinuado que era melhor adiar o julgamento para depois das eleições, e que, em troca, blindaria o ministro de uma possível ligação com Cachoeira e o senador Demóstenes Torres.
Gilmar Mendes rejeitou de imediato a tentativa de coação. E mais: denunciou publicamente o fato. Lula desmentiu. Nélson Jobim, nem isso. E o fato, gravíssimo, único na história da república, logo seria olvidado. (p. 255)

O PT era considerado uma novidade na política brasileira. A "novidade" daria vida nova às oligarquias. É muito difícil encontrar, nos últimos cinquenta anos, um período tão longo em que os velhos oligarcas tiveram tanto poder como o de agora. Usaram e abusaram dos recursos públicos e transformaram seus estados em domínios familiares perpétuos. (p. 272)


terça-feira, 15 de agosto de 2017

Corações descontrolados: ciúmes, raiva, impulsividade - o jeito borderline de ser - Ana Beatriz Barbosa Silva (2012)

Antes de descrever o que é o transtorno de personalidade borderline é preciso compreender o que é uma personalidade propriamente dita.
De forma bem abrangente, a personalidade é um conjunto de padrões de pensamentos, sentimentos e comportamentos que uma pessoa apresenta ao longo de sua existência. Ela é o resultado da interação dinâmica daquilo que herdamos geneticamente de nossos pais (temperamento) com as experiências que adquirimos durante toda a vida (caráter). (p. 21)

A personalidade é um conjunto de padrões de pensamento, sentimentos e comportamentos que tendem a se repetir em uma pessoa ao longo de sua vida. Quando um padrão sentir/pensar/agir é apresentado por diversas pessoas de forma estatisticamente relevante na população geral, passa a ser uma personalidade classificável. (p. 22)

Todos nós apresentamos momentos de explosões de raiva, tristeza, impulsividade, teimosia, instabilidade de humor, ciúmes intensos, apego afetivo, desespero, descontrole emocional, medo da rejeição, insatisfação pessoal. E, quase sempre, isso gera transtornos e prejuízos para nós mesmos e/ou para as pessoas ao nosso redor. Porém, quando esses comportamentos disfuncionais apresentam-se de forma frequente, intensa e persistente, eles acabam por produzir um padrão existencial marcado por dificuldades de adaptação do indivíduo ao seu ambiente social. Quando isso ocorre podemos estar diante de um quadro bastante complexo, confuso e desorganizado, denominado transtorno de personalidade borderline (TPB). (p. 23)

Os borders (vamos chamá-los assim) são tão intensos que a vida com eles pode ser tudo, menos tranquila. Há um excesso em tudo que dizem e fazem, no mais puro estilo exagerado de sentir, pensar e agir. (p. 24)

Os borders vivem literalmente "nos limites". (p. 24)

Toda pessoa border vive no limite de uma hemorragia emocional; vez por outra sangra a alma e, não raro, o próprio corpo. (p. 24)

A pessoa border, por sua vez, também apresenta sintomas de ansiedade, dificuldade de concentração e impulsividade; no entanto, a origem destes não está na hiperatividade mental (como é o caso dos TDAHs), e sim na hiperatividade emocional/afetiva. (p. 27)

Segundo a Associação de Psiquiatria Americana (APA) e a Organização Mundial da Saúde (OMS), estima-se que 2% da população mundial tenham essa forma de ser, pensar e agir. (p. 30)

Optei por dividir as disfuncionalidades em quatro aspectos: emocional, cognitivo, comportamental e pessoal.
- Disfunção Emocional:
     * Hiperatividade emocional
     * Emoções dúbias e conflitantes
     * Instabilidade afetiva
     * Humor e equilíbrio emocional em constante oscilação
     * Ira intensa inapropriada
     * Agitação física
     * Sentimento de vazio ou tédio
     * Sentimento de ódio, ira e vergonha em relação a si mesmo
- Disfunção Cognitiva:
     * Incapacidade de manter os pensamentos estáveis
     * Dificuldade de aprender com as experiências passadas
     * Autoimagem instável e com características extremas
     * Sentimentos crônicos de vazio
     * Pensamentos antecipados de abandono
     * Temor excessivo de sofrer rejeição
     * Seus objetivos e valores acompanham suas instabilidades emocionais e afetivas
     * Não suportam ficar sozinhos
     * Dificuldade de concentração
     * Seus pensamentos tendem a seguir um padrão rígido, inflexível e impulsivo
     * Pensamentos envoltos em autorreprovações e autocríticas
     * Baixa tolerância a frustração
     * Ideias paranoides transitórias; despersonalização, perda do senso de realidade ou sintomas dissociativos
     * Aborrecimentos frequentes
- Disfunção Comportamental:
     * Necessidade de controle externo
     * Padrões de aparência oscilante
     * Níveis de energia física incomuns, que se manifestam em explosões inesperadas de impulsividade
     * Brigas e conflitos frequentes
     * Comportamento recorrente de automutilação ou tentativas de suicídio
     * Relações interpessoais intensas e caóticas
     * Dependência excessiva dos outros
     * Boa adaptação social
     * Tendência a fazer passeios solitários para tentar refletir sem influência ao redor
     * Comportamentos frequentes para proteger-se de possíveis separações afetivas
     * Chantagens emocionais constantes e atos de irresponsabilidade
     * Comportamento paradoxal em suas relações interpessoais
- Disfunção Pessoal:
     * Sensação de vazio e de solidão
     * Frequente comparação a outros, com uma visão autodepreciativa
     * Dificuldade em expressar suas necessidades e sentimentos
     * Facilidade em serem influenciados e manipulados, assim como tendência a manipular as pessoas ao seu redor para ter controle externo das situações
     * Estilo de se vestir variável e instável, tal como seus afetos (p. 41 a 52)

Não podemos, de forma alguma, incorrer no equívoco de "diagnosticar" todas as pessoas que apresentam algumas das características descritas em detalhes. O que caracteriza, de fato, o transtorno de personalidade borderline é a presença de um conjunto bem-delineado de sintomas e o padrão de frequência, intensidade e temporalidade com que eles estão presentes no cotidiano desses indivíduos. (...) Muitas características dessa personalidade, tão complexa, são difíceis de serem identificadas e, principalmente, de serem diferenciadas de outros transtornos mentais, como exposto anteriormente. Entre eles estão a depressão, o transtorno bipolar, a ciclotimia, o TDAH, os transtornos de ansiedade (incluindo aqui o estresse pós-traumático), o transtorno de personalidade psicopática ou antissocial, entre outros. (p. 53)

Exponho a seguir os critérios diagnósticos. Destaco ser necessária a presença de, no mínimo, cinco das características descritas por um período de pelo menos um ano (em contextos sociais diferentes) para que o diagnóstico possa ser estabelecido de fato:
1. Impulsividade potencialmente perigosa em pelo menos duas áreas (exemplos: gastos excessivos, promiscuidade, direção perigosa, abuso de drogas, compulsão alimentar etc.).
2. Ira inapropriada e intensa ou dificuldade para controlá-la.
3. Instabilidade afetiva devido a uma grande reatividade do estado de humor.
4. Ideias paranoides transitórias relacionadas a estresse ou sintomas dissociativos graves.
5. Alteração de identidade: instabilidade acentuada e resistente da autoimagem ou do sentimento do self.
6. Um padrão de relações interpessoais instáveis e intensas.
7. Esforços frenéticos para evitar um abandono real ou imaginário.
8. Ameaças, gestos ou comportamentos suicidas recorrentes ou comportamentos de automutilação: 90% dos borderlines irão cometer uma tentativa de suicídio e, desses, 10% serão bem-sucedidos.
9. Sentimentos crônicos de vazio. (p. 54)

Apear dessa diversidade, as famílias que têm em seu lar um adolescente border costumam compartilhar certos tipos de pensamentos e comportamentos. (p. 64)

 A impulsividade é regulada em uma região cerebral denominada córtex pré-frontal. Tal qual um maestro de uma orquestra, essa região tem a função de "filtrar" nossos impulsos, especialmente aqueles gerados por nossas emoções mais intensas, como raiva, ódio, rejeição e frustração. Quando o córtex pré-frontal funciona corretamente, podemos filtrar a carga emocional de nossos desejos imediatos, para adequarmos nossas ações às situações que requerem entendimento e comportamentos sociais e afetivos harmônicos. Quanto à impulsividade, as personalidades borders, em geral, apresentam dois aspectos desafiadores e que requerem delas um grande grau de consciência e esforço para transporem suas dificuldades. O córtex pré-frontal desses indivíduos apresenta uma disfuncionalidade que prejudica bastante a filtragem redutora dos impulsos que essa região recebe diretamente do sistema límbico.
O sistema límbico funciona como a grande central cerebral das emoções. Seria o coração de nossas mentes; é nessa região que sentimos desde as emoções positivas, como amor, ternura e tolerância, até as negativas, como ódio, mágoa e rancor. As pessoas borders apresentam uma grande hiperatividade nessa central emocional e, por conta disso, estão sempre gerando um número exacerbado de emoções com intensidades também elevadas. Essas emoções acabam produzindo impulsos que são conduzidos diretamente ao córtex pré-frontal, para serem moduladas de forma quantitativa e qualitativa. E é exatamente nesse processo que os borders começam a "capotar", pois o sistema de freio, composto pelos seus córtex pré-frontais, são hipofuncionantes; ou seja, eles freiam menos os impulsos emocionais do que deveriam. O resultado é uma impulsividade exacerbada, tal qual um carro em alta velocidade, que a qualquer hora pode provocar um grave acidente e com consequências desastrosas tanto para o motorista quanto para as diversas pessoas ao redor. (p. 67)

Sem tratamento adequado, tanto medicamentoso quanto psicoterápico, esses ataques de fúria irão ocorrer de forma inevitável, até porque existem motivos neurofisiológicos que os justificam e tendem a retroalimentá-los. (p. 68)

A adolescência é uma fase de busca de identidade, de descobertas e de experimentações. É normal que os filhos apresentem mudanças de identidade nessa fase de tantas indefinições e de novas definições, mas o que observo é que essa "crise fisiológica" de identidade nos adolescentes borderlines exibe um caráter mais profundo e intenso. Eles acabam sendo mais influenciados do que os demais adolescentes, sendo muito comum essas mudanças acontecerem de acordo com os melhores amigos. Por esta razão, os pais devem ficar atentos e ter muito cuidado com quem seus filhos se relacionam, pois eles são como "esponjas" que absorvem facilmente as ideias e os comportamentos de seus amigos do momento. Dessa forma, podem também ser manipulados por eles para cometerem alguns delitos ou mesmo realizarem fantasias de conteúdo sexual ou aventureiro de alto risco. É importante destacar aqui que a maioria absoluta dos borders, no fundo de suas consciências, sabe distinguir o certo do errado e os pais devem sempre destacar essa lucidez moral deles. (p. 72)

Para todos os pais que têm filhos adolescentes, o uso de drogas é uma preocupação. (...) Existem dicas que podem levar os pais a desconfiar de que isso esteja acontecendo com seu filho. Entre elas, destaco as seguintes:
- Começa a ficar misterioso;
- Irrita-se com perguntas banais sobre seu cotidiano;
- Distancia-se de forma radical dos pais;
- Passa muito tempo trancado no quarto;
- Piora o rendimento escolar;
- Perde o interesse nas atividades extracurriculares;
- Aumenta a irritabilidade;
- Piora o estado de humor;
- Evita apresentar seus novos amigos;
- Fica com a aparência descuida;
- Objetos e dinheiro começam a desaparecer de casa. (p. 75)

É importante esclarecer que traumas na infância, famílias desestruturadas e contextos socioeconômicos desfavoráveis podem potencializar o transtorno de personalidade borderline; entretanto, em hipótese alguma, são pré-requisitos fundamentais ou necessários para que o transtorno ocorra em uma determinada pessoa. (p. 90)

Em função dessa fluidez de identidade, o border tende a incorporar, de maneira intensa e muito rápida, hábitos, valores e comportamentos das pessoas com as quais estabelece relações afetivas, especialmente daquelas com quem desfruta de um convívio mais frequente.
É comum a pessoa border virar pagodeira, vegetariana, budista, evangélica, naturalista, desportista, capoeirista ou umbandista ao namorar alguém com algumas dessas práticas.
A identidade fluida revela a maior das feridas dos borderlines: uma total incapacidade de coexistirem dentro de si mesmos, gostarem de ser quem são e de exercerem o seu eu mais verdadeiro e profundo. (p. 117)

No momento da concepção, diferenças minúsculas na passagem de todo o material genético materno e paterno para o novo ser podem gerar e resultar em significativas diferenças no desenvolvimento final do complexo cérebro/mente de cada pessoa. (p. 131)

Antes do nascimento (em média um a dois meses), o cérebro do feto passa por um complexo processo de migração neuronal. Isto é, milhões de neurônios são realocados para "fortalecerem" áreas nobres que serão mais exigidas na fase pós-útero.
Logo após o nascimento, inicia-se um processo de "lapidação" neuronal, reduzindo o número de células cerebrais. Não sabemos a razão exata dessas mudanças, mas o fato é que elas ocorrem e nos expõem a toda a complexidade do desenvolvimento cerebral até os primeiros meses de vida de um bebê. (p. 132)

A neuropsiquiatria, apoiada nos avanços da neurociência, está descobrindo que grande parte do que julgávamos dever-se à má-educação ou a traumas infantis na verdade sofre profunda influência da genética, da estrutura e da neuroquímica de nossos cérebros.
Há quase um século Sigmund Freud afirmou: "Toda pessoa só é normal na média, seu ego aproxima-se do sicótico em uma ou outra parte, em maior ou menor extensão". Hoje a neurociência prova que Freud estava certo: provavelmente inexiste a pessoa "normal", no sentido de ter um cérebro perfeito em que cada região e função se harmonizem de forma igualitária. Esse cérebro perfeito talvez seja uma impossibilidade lógica: uma pessoa genial ou muito talentosa em determinada área de conhecimento ou habilidade se desenvolve como resultado de déficits (ou fraquezas) em outra. Um gênio em matemática ou física em geral apresenta poucas aptidões linguísticas ou habilidades sociais. De certa forma, "pagamos" pelo nosso talento tanto cognitivo quanto emocional, com perdas "relativas" em funções mentais. (p. 133)

O sofrimento dos borderlines pode nos parecer algo desproporcional ou mesmo exagerado, mas jamais podemos vê-lo como algo irreal ou ilegítimo. (p. 145)

A Psiquiatria Internacional reconhece que, atualmente, o diagnóstico desse transtorno pode levar até dez anos para ser feito de forma definitiva. (p. 146)

Por outro lado, gostaria de deixar claro que, independentemente da presença de um diagnóstico preciso, podemos e devemos auxiliar esses pacientes na busca de um conforto existencial mínimo para que eles possam evoluir positivamente n início do tratamento. Nesse momento é importante tratar os sintomas que mais incomodam e/ou trazem transtornos na vida do paciente, que são, em geral, os sintomas depressivos, os atos automutilantes e a impulsividade para consigo mesmo e para com os demais. (p. 147)

Devemos ter em mente ainda que o tratamento não é apenas para os indivíduos que fecham o diagnóstico, mas também para os que apresentam o traço borderline, ou seja, sintomas desse funcionamento mental a ponto de lhe causarem significativas disfuncionalidades na vida cotidiana. (p. 148)

Vamos imaginar que o nosso cérebro seja uma máquina complexa tal como um carro que precise de elementos-chave para um funcionamento ideal: combustível, revisão sistemática, ajustes etc. Além disso, a maneira como conduzimos o carro também contribui para que ele apresente problemas no futuro ou tenha uma vida mais longa e com qualidade. Se conseguirmos entender um pouquinho do que o nosso cérebro necessita para ter um desempenho mais eficaz, teremos a chance de potencializar seus aspectos positivos e, dessa maneira, melhorar nossa forma de viver. (p. 149)

A dialética utilizada no tratamento do transtorno de personalidade borderline é DESCONFORTO X CONFORTO do paciente frente a ele mesmo e às situações da vida diária, social, familiar, afetiva e profissional. Sendo assim, busca primeiro aliviar os maiores, mais graves e disfuncionais desconfortos e, posteriormente, outros sintomas que prevaleçam e que poderão surgir durante o tratamento. (p. 151)

O nosso cérebro é dinâmico e altamente reativo aos acontecimentos, pensamentos e sentimentos. Quando há uma dificuldade intrínseca de se conseguir esta sintonia, como ocorre com os borderlines, é preciso criar um ambiente interno perfeito para que o cérebro consiga funcionar adequadamente. Fazer uma boa hidratação diária, bebendo no mínimo dois litros de água; ativar a circulação sanguínea com exercícios físicos rotineiros; ter uma alimentação balanceada, de preferência rica em ômega-3 e com doses regulares de proteína animal, frutas e verduras. Deve-se, ainda, evitar jejuns prolongados, pois ativa o sistema cerebral do "stress", que, por sua vez, acaba ativando a amígdala - estrutura responsável pelas nossas emoções. Todos esses cuidados com o organismo são o mínimo que podemos fazer pelo nosso cérebro e para que produza, de forma harmônica, nossos neurotransmissores. (p. 153)

Esta fina lapidação do funcionamento dos circuitos cerebrais que ocorre com a ajuda dos medicamentos, da boa alimentação, da boa hidratação, dos exercícios físicos, do estímulo mental, da psicoterapia e da própria capacidade de readaptação cerebral é a grande arte da melhora tão esperada. (p. 156)

Os inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS) não causam dependência, têm baixa toxicidade e são extremamente seguros no caso de superdosagem. Apresentam poucos efeitos colaterais e, em sua grande maioria, são toleráveis, assim como ajudam a minimizar, de forma significativa, diversos sintomas dos pacientes borderlines. Se colocarmos em uma balança, geralmente, há poucos motivos (ou nenhum) para não prescrevê-los, mesmo que temporariamente. Nenhum tratamento psiquiátrico é definitivo, podendo variar conforme os sintomas.
- Fluoxetina: ação antidepressiva, principalmente em crianças e adultos jovens. É utilizado também no tratamento de transtornos alimentares, tensão pré-menstrual, hipersensibilidade emocional, irritabilidade e sintomas obsessivo-compulsivos.
- Paroxetina: usada nos estados depressivos, pânico e fobias.
- Sertralina: eficaz nos quadros depressivos, pânico, fobias, ansiedade, sintomas obsessivo-compulsivos, irritabilidade, agressividade e hipersensibilidade emocional.
- Citalopram: utilizado nos quadros depressivos e nos transtornos de ansiedade.
- Escitalopram: utilizado nos quadros depressivos e nos transtornos de ansiedade.
- Fluvoxamina: eficaz especialmente nos pensamentos obsessivos. (p. 157)

Estudos demonstram que realmente a terapia cognitivo-comportamental (TCC), mais especificamente a psicoterapia dialética-comportamental, terapia baseada na mentalização e terapia ficada na transferência, são mais eficazes nestes pacientes. Estas terapias, basicamente, focam no comportamento de hoje do paciente e me quem ele é agora; como ele se vê mais feliz e o que é possível fazer para conseguir isso. Aspectos da infância e da adolescência são relevantes e importantes para auxiliar no diagnóstico, mas a terapia é focada nestes aspectos. (p. 160)

A psicoterapia é o elemento-chave nessa reabilitação do sentir por meio de uma reestruturação cognitiva, que traz ao paciente uma nova forma de entender, enxergar e sentir o mundo, isto é, substituindo crenças, pensamentos e interpretações negativistas e disfuncionais do mundo e de si mesmo, aliviando assim seus sintomas de mal-estar interno. (p. 160)

A terapia familiar é fundamental, ressalto sua importância porque o conflito doméstico é algo bastante presente e que causa grande desconforto não só para os pacientes como para os familiares. (p. 162)

A psicoterapia em grupo é uma boa opção, especialmente para pacientes que apresentam traços border, cujo nível de disfuncionalidade é mais baixo. Já para os pacientes mais instáveis e graves, recomenda-se um tratamento individualizado. (p. 162)

Celebridades com suposto funcionamento borderline:
- Amy Winehouse - "Explosiva, encrenqueira e talentosa"
- Marilyn Monroe - "Bela, sexy e imortal"
- Tony Curtis - "Ascensão e queda de um astro"
- Janis Joplin - "A aloprada do rock"
- Elizabeth Taylor - "Filmes, vícios, luxo e sete maridos"

O transtorno de personalidade borderline deriva de diversas disfuncionalidades neurobiológicas dentro dos incontáveis circuitos cerebrais. De forma mais didática, isso significa dizer que existem nesse transtorno alterações na produção e na liberação de vários neurotransmissores, que são substâncias produzidas no cérebro, cuja função é transmitir e interconectar as informações entre os neurônios de várias áreas cerebrais. No caso específico dos borderlines, as áreas mais importantes são aquelas que estão relacionadas às emoções e afetividade. Essa região recebe o nome de sistema límbico e pode ser considerado o "verdadeiro coração" do ser humano, pois é ali que nossas emoções são geradas, moduladas e, às vezes, extrapoladas.
Quando ouvimos expressões românticas do tipo "um coração partido", tenha certeza de que o coração verdadeiro está todo inteiro, mas o coração mental (sistema límbico) encontra-se em "ebulição". (p. 190)

Existem evidências de que os borderlines apresentam disfunções neurobiológicas, especialmente na região cerebral denominada frontolímbica. Essa área engloba a parte frontal do cérebro (região da testa) - responsável pela tomada de decisões, uma vez que o lobo frontal funciona como o nosso "freio" cerebral - e todo o sistema límbico, constituído por diversas estruturas do cérebro que comandam nossas emoções. Dentro do sistema límbico, a amígdala é a estrutura-chave na nossa regulação afetiva, no processamento de nossas emoções e no exercício de nossa impulsividade.
Uma série de estudos de neuroimagem estrutural (relativo ao tamanho), realizados por Mary C. Zanarini, da Harvard Medical School (EUA), demonstrou uma diminuição de diversas áreas do cérebro em pacientes borderlines, tais como: o hipocampo, que é a área do cérebro responsável pela memória; a amígdala, responsável pelas emoções em geral; o lobo frontal, que é uma área associativa do cérebro e por isso exerce a função de filtro ou freio para nossos excessos.
Estudos de neuroimagem funcional (metabolismo dos neurônios), também realizados por Zanarini, revelaram anormalidades no metabolismo da glicose (principal alimento das células cerebrais) nas mesmas regiões descritas antes, mas também evidenciaram de forma mais precisa alterações no córtex pré-frontal orbital - que faz parte do lobo frontal, mas é uma área mais específica onde são processadas as informações para que nossas decisões possam ser tomadas com mais racionalidade e equilíbrio. Outras alterações também puderam ser observadas, como a diminuição da atividade neuronal no tálamo (área responsável por direcionar informações vindas do corpo para áreas de interpretação e resposta), no hipocampo esquerdo, nos núcleos de base (responsáveis pelo início e término dos movimentos) e no córtex pré-frontal dorsolateral (área do lobo frontal específica para a regulagem da impulsividade). (p. 193)

Segundo António Damásio, autor do livro O erro de Descartes, as melhores decisões são tomadas quando existe um equilíbrio entre o nosso lado emocional e o nosso lado racional. E para que nossas emoções possam nos auxiliar nas tomadas de decisão é necessário que elas se conectem com nossa memória; assim, emoções positivas tenderão a ser repetidas no futuro. Em contra-partida, a memorização das emoções negativas e causadoras de partida, a memorização das emoções negativas e causadoras de sofrimentos tenderão a fazer com que aprendamos a não repeti-las em outras ocasiões de nossas vidas. Para que essa relação entre emoção e razão seja harmônica e produtiva, é preciso haver uma conexão estreita entre a amígdala e o hipocampo. Nossa memória é um processo completamente associativo, e a responsável por essa associação entre a emoção e o sentimento com o acontecimento ocorrido dentro ou fora de nosso corpo é a amígdala, em parceria com o hipocampo. A amígdala também mantém estreita relação com o núcleo accumbens, uma estrutura bem pequena que fica no meio do cérebro e é formada por um conjunto de neurônios capazes de produzir e liberar dopamina (neurotransmissor responsável pela sensação de prazer e motivação). O núcleo accumbens juntamente com a amígdala (coração cerebral) e o hipocampo (memória) são responsáveis pela interpretação dos fatos que vivenciamos e seus consequentes significados. Todas as situações (boas ou ruins) que fazem o núcleo accumbens liberar dopamina vão acionar em nosso cérebro a vontade de repetição, em busca da sensação de prazer. O que irá definir se a repetição é benéfica ou não para o indivíduo são a amígdala e o hipocampo, que juntos são responsáveis pela interpretação emocional e o armazenamento das informações na forma de aprendizado. (p. 196)

A constituição de nossa afetividade está intimamente ligada à maneira pela qual uma pessoa se relaciona com os outros e consigo mesma. O processo em que um indivíduo se enxerga como um ser único e independente dos demais é denominado de "subjetividade do eu", e ele ocorre através das experiências vivenciadas desde o início da infância. Entre 4 e 5 anos, uma criança já tem noção exata de que ela é um ser diferente de seus pais, especialmente de sua mãe. É nessa fase da vida que os pequenos começam a "mentir" e se divertem com a constatação de que seus pensamentos não podem ser totalmente desvendados por seus familiares e/ou cuidadores. (...) Perceber-se um sujeito único, ao mesmo tempo que é mágico e fascinante para a maioria das crianças, pode se revelar algo aterrorizador e angustiante para aquelas que já nascem com uma genética bem marcada para a disfuncionalidade afetiva dos borderlines. Ver-se único para essas crianças pode fazê-las se sentir vazias, sós e desprotegidas. E é nesse momento que a influência do ambiente externo poderá fazer uma profunda diferença entre as crianças que apresentarão as formas mais leves ou apenas traços do transtorno, e aquelas nas quais evidenciaremos quadros graves com disfuncionalidades interpessoais capazes de colocar em risco suas próprias vidas e das pessoas com as quais estabelecem relações intensas e doentias. (p. 200)

Descartes um dia afirmou "Penso, logo existo" e durante muito tempo não questionei essa afirmação, cheguei a citá-la com entusiasmo em diversas aulas sobre o funcionamento mental de nossa espécie. No entanto, hoje necessito rever alguns conceitos e esse é um deles.
Tenho o firme propósito de acreditar que, se Descartes pudesse ter acesso a todo o conhecimento científico gerado nos últimos vinte anos, pelo menos em relação ao funcionamento cerebral, ele se reescreveria em algo mais ou menos assim: "Sou humano, logo me emociono e, se as emoções me permitirem, pensarei adequadamente". (p. 201)

Nascemos para nos conectar e essas conexões possuem um poder significativo de "esculpir" nossas vivências e também nossa biologia cerebral. Dessa forma, nossas relações interpessoais mais íntimas e intensas são capazes de moldar nosso comportamento, bem como nosso equilíbrio bioquímico interno, o que inclui alterações hormonais e imunológicas que regem nossa homeostasia orgânica. (p. 205)

Os estudos mais recentes sobre o amor no campo da neurociência distinguem três grandes sistemas neurais: o do apego, o do cuidado e o do sexo.
O apego nos conduz à procura de pessoas com quem possamos contar em situações de perigo, aquelas que estariam prontas a nos socorrer quando precisássemos de ajuda. As pessoas pelas quais desenvolvemos apego são aquelas das quais mais sentimos falta em situações em que elas estão ausentes em nossas vidas.
O cuidado responde pelo impulso que temos de cuidar de alguém, especialmente das pessoas com as quais nos importamos mais e, consequentemente, nos preocupamos. Para facilitar o entendimento sobre apego e cuidado, podemos afirmar que o apego promove a união, funciona como uma "cola" que une o casal, a família, os amigos e demais afetos amorosos. Já o ato de cuidar visa suprir as necessidades dos que amamos.
O sexo, por sua vez, além de ser muito bom, é responsável pelo início de todo esse processo amoroso interpessoal. Convém destacar que o sexo, isoladamente, não constitui uma relação afeto-amorosa; no entanto, todos concordam que um sexo de qualidade propicia, em muito, o desenvolvimento do apego e do cuidado entre cônjuges ou parceiros amorosos.
Quando existem apego, sentimentos de cuidado e atração sexual, podemos afirmar que experimentamos um romance completo. A este estado de harmonia e completude denominou-se amor romântico. (p. 210)

Nosso cérebro é tão perfeito na tarefa de nos manter vivos, que o estado de paixão geralmente tem duração limitada, de poucos meses a até dois anos. (p. 212)


domingo, 13 de agosto de 2017

Conversas com um jovem professor - Leandro Karnal (2012)

Aqui, um conselho prático: antes de entrar em sala, ouça os colegas, desde os muito interessantes até os indiferentes. Alguns querem ajudar. Outros não toleram sua juventude ou entusiasmo. Ouça a todos. Porém, nunca se esqueça: a fala do colega diz respeito, exclusivamente, à experiencia dele e não à sua. O aluno-problema dele talvez seja apenas dele e a turma fácil talvez não flua tão bem com você. (p. 16)

É como injeção: a espera pela picada da agulha costuma causar mais angústia do que a espetada em si. (p. 18)

Há poucos bons professores. Há muita gente que dá aula bem. Acho que o ponto principal que diferencia um do outro é a capacidade de olhar para seu aluno e se sentir junto com ele. (p. 23)

Fale mais alto e mais baixo de acordo com o que você quer demonstrar. Reforce conceitos centrais ou conclusões com voz mais forte e mais pausada. Treine isso em casa algumas vezes. (p. 25)

Tal como no teatro, há figurino. Há um figurino adequado para a aula. No caso do magistério, eu diria que (levando em conta também o que ganhamos) que o simples e sóbrio é adequado. O ideal é que a roupa do professor seja imperceptível. Nem tão sofisticada e nem tão despojada que mereça comentário. (p. 26)

Tomar frases e gestos de alunos como pessoais é um erro grave. (p. 31)

O exercício do professor, do médico, do psicólogo é sempre estar sensível ao outro e não a si. Não é algo superficial nem um detalhe. (p. 34)

Repetição é uma das chaves da memória. (p. 44)

Não existe nenhuma fórmula, mas evite ler um elogio ou uma crítica isolados como opinião da turma. Os alunos fazem isso como estratégia retórica. Nunca nos dizem: Eu não estou entendendo ou EU não estou gostando. Sempre dizem: NINGUÉM está entendendo nada ou NINGUÉM gosta dessa atividade. Ouça com atenção, mas siga suas metas. (p. 53)

Ser bom implica riscos. Ser ruim não implica riscos, talvez, por isso, exista tanta gente que seja ruim. (p. 56)

SEMPRE o professor é o culpado. Na educação, o professor ocupa o papel que o mordomo ocupava na busca do assassino nos castelos ingleses. (p. 60)

Jamais compactue coma  fraude. O professor que ignora a cola pelos problemas políticos e pessoais de punir um fraudador colabora para o mundo do estelionato aberto e da impunidade que grassam entre nós. (p. 82)

Há algo que valia na Academia de Platão ou no Liceu de Aristóteles e vale hoje, no século XXI: uma boa aula é aquela que faz pensar, provoca reflexão e traz, com isso, uma nova percepção das coisas. Uma boa aula atinge seu objetivo, seduz e instiga. Uma boa aula diz, de forma clara e sintética, o que deve ser dito. (p. 94)

Erroneamente, avaliamos que o "bagunceiro", aquele do "fundão" que está rindo à toa, acredita muito em si e não precisa de nenhum incentivo. Em diversas ocasiões dp exercício d magistério, pude observar que esse aluno estava fazendo muito barulho para que ninguém se aproximasse dele. A mensagem passada era: "Eu me basto!". Quando conseguimos chegar mais perto, conhecê-lo melhor, constataremos grandes surpresas. E, quem sabe, mudanças... (p. 115)


quarta-feira, 31 de maio de 2017

Contra a maré vermelha - Rodrigo Constantino (2015)

Um povo que pretende ser livre precisa defender princípios, não seus "camaradas" como se fossem membros de uma máfia. A fidelidade deve ser aos valores comuns, não aos aliados, por interesses escusos. Todo tipo de imperialismo deve ser condenado, independentemente de quem é o imperialista. Caso contrário, trata-se de pura hipocrisia. (p. 16)

Martin Luther King tinha um sonho, de viver num país onde seus filhos fossem julgados não pela cor da pele, mas pelo seu caráter. Trata-se da meritocracia no lugar do racismo. O Brasil, a despeito de seus defeitos, tem demonstrado ser capaz de preservar parcialmente esta visão de mundo. Não podemos deixar que alguns poucos militantes organizados destruam isso. (p. 22)

Cada indivíduo possui diversas características que ajudam a identificá-lo, entre elas: crença religiosa, altura, classe social, sexo, visão política, nacionalidade e cor da pele. O coletivista é aquele que seleciona arbitrariamente alguma dessas características e a coloca no topo absoluto da hierarquia de valores. Para o nacionalista, a nacionalidade é a coisa mais relevante do mundo. Para o socialista, a classe é tudo que importa. para o racialista, a "raça" define quem somos. Todos eles ignoram a menor minoria de todas: o indivíduo. (p. 26)

Existem diversas formas de o governo tentar manipular a imprensa. A mais óbvia é através de suas polpudas verbas de propaganda, incluindo as estatais. Num país com enorme presença do governo na economia, este fator merece destaque. O cão não morde a mão que o alimenta. Além disso, o governo decide sobre as concessões, mantendo as empresas como reféns. Essa tem sido a arma preferida do caudilho Chávez. Por fim, num país com excesso de leis e burocracia, onde o custo da legalidade plena é praticamente proibitivo, o governo sempre pode ameaçar as empresas com o achaque dos fiscais. Cristina Kirshner usou essa tática contra o Clarín. (p. 29)

Um dos grandes paradoxos das democracias modernas é a tendência a reclamar do governo ao mesmo tempo que mais responsabilidade é delegada ao poder político.

Característica bastante comum nos debates, muito são aqueles que tentam monopolizar a virtude. Trata-se daquilo que Thomas Sowell chamou de "tirania da visão". A pessoa, imbuída das melhores intenções, acaba rejeitando uma reflexão honesta e imparcial quanto aos melhores meios disponíveis para os fins desejados. (p. 43)

Saber quanto efetivamente pagamos em cada produto deveria ser um direito básico de qualquer um. No Brasil, entretanto, isto não ocorre, pois inúmeros impostos permanecem ocultos no preço final. Existem dezenas de impostos, tributos e taxas no país, que incidem de forma indireta nos produtos. A quem interessa manter o povo na ignorância desses fatos? Claro que apenas os consumidores de impostos se beneficiam, enquanto todos os pagadores de impostos, incluindo os mais pobres, pagam a conta sem saber sua real magnitude. Isto é imoral. (p. 52)

Nem os tucanos nem os petistas fizeram as reformas estruturais (previdenciária, tributária, trabalhista e política). Qual partido terá coragem de lidar com a preocupante realidade do rombo previdenciário, uma verdadeira bomba-relógio que precisa ser desarmada antes que a demografia torne a situação ainda mais explosiva? Que partido vai atacar o manicômio tributário deste país, com dezenas de impostos que incidem em cascata em todos os produtos? Quem cai comprar briga com as máfias sindicais que impedem as urgentes mudanças das leis trabalhistas, que concentram privilégios à custa dos trabalhadores informais e desempregados? Quem vai defender o coto facultativo e distrital, a descentralização do poder, demasiadamente concentrado em Brasília? Quem ousa mexer nos privilégios dos funcionários públicos? (p. 55)

Somos recordistas mundiais em homicídios. Nossas estradas federais são assassinas. O transporte público é caótico. A saúde e a educação públicas são vergonhosas. A impunidade e a morosidade são marcas registradas de nossa Justiça. A corrupção se alastra feito um câncer. A cultura do "jeitinho" tomou conta do país e a ética foi parar no lixo. Nossas instituições republicanas estão ameaçadas. Nossa democracia é vítima do descaso e do escancarado uso da máquina estatal para a compra de votos. O Estado, capturado por um partido, pratica crimes contra o cidadão, como a quebra de sigilo fiscal da Receita. E ainda somos obrigados a trabalhar cinco meses do ano somente para pagar impostos! (p. 68)

O alerta, feito pelos economistas Kenneth Rogoff e Carmen Reinhart, merece atenção: "Como se demonstrou reiteradamente ao longo do tempo, os governantes dos países emergentes tendem a considerar os surtos favoráveis como tendências duradouras, o que, por seu turno, atiça uma farra de gastos e de empréstimos públicos, que termina em lágrimas". (p. 101)

Esse livro é excelente. Para poder colocar aqui as melhores partes teria que copiar o livro todo!

terça-feira, 30 de maio de 2017

ANALOGIA DAS CAIXAS DE BOMBONS

ANALOGIA DAS CAIXAS DE BOMBONS


Digamos que você esteja precisando dos efeitos do chocolate na sua vida, e você resolve ir ao supermercado para comprar uma caixa de bombons.

Ao chegar no supermercado você percebe que existem caixas de bombons de várias marcas e com bombons sortidos. Você pega uma caixa da Lacta e diz:

- Ah! A Lacta tem o Sonho de Valsa, e eu adoro Sonho de Valsa.

Mas ao ver a caixa da Garoto:

- Ah! Mas a Garoto tem Baton e eu amo o Baton.

E mais a frente:

- Não, mas a Nestlé tem Chokito e eu faço tudo por um Chokito!

E agora? O que fazer?

Toda caixa de bombons sortidos tem aquele que você adora (são os primeiros que você devora), tem aqueles que você gosta, tem aqueles que você suporta (esses são os últimos a serem comidos), e tem aqueles intragáveis (são os que você coloca num potinho para oferecer às visitas).

O que fazer na situação colocada acima? O ideal seria você comprar as três caixas de bombons e verificar com calma o conteúdo de cada uma delas. Depois você pega um recipiente só seu, escolhe os melhores bombons de cada caixa, e monta a sua própria caixa de bombons. Não importa o que a Lacta, a Garoto ou a Nestlé queiram empurrar para você, você pode comer só o que você quiser e descartar o resto.

Do mesmo modo, esse procedimento pode ser aplicado à nossa vida cotidiana. Frequentemente a sociedade tenta empurrar para você pacotes fechados de ideologias políticas, religiões, comportamentos, etc.

O partido X é o melhor e você deve replicar suas ideias, a religião X é a única que te leva para o céu/paraíso, você nasceu homem/mulher e deve se comportar como tal, as medidas ideais são essas e você deve se esforçar para alcançá-las, você deve comer mais X e menos Y, você deve se vestir de modo adequado à sua idade, você deve namorar alguém mais próximo da sua idade, você deve se casar com alguém da sua classe social, se você casou então deve ter filhos, seria bom você arrumar um emprego fixo, talvez você devesse prestar concurso, se você é feminista deve defender a descriminalização do aborto, se você defende a liberdade deve defender a liberação da maconha, e assim vai... Existem milhões de exemplos que poderiam ser usados aqui.

Usando a analogia das caixas de bombons, podemos dizer que o ideal seria conhecer a fundo todas as ideologias, religiões e comportamentos, adotar o que te agrada neles e descartar o que não te agrada.

Onde está escrito que eu só posso comprar uma caixa de bombons? Onde está escrito que eu devo comer a caixa de bombons inteira? Tanto os bombons que eu gosto quanto os que eu não gosto? Onde está escrito que você deve defender todas as ideias de uma ideologia? Tanto as que você aprova quanto as que você não aprova? Onde está escrito que você deve seguir todos os preceitos de uma religião? Onde está escrito que você deve adotar todos os comportamentos que algum segmento tenta lhe impor?

E se te perguntarem: 

- Mas o que você é?

Você responde: 

- Eu sou Fulano de Tal, defendo o que minha experiência demonstrou fazer efeito, sem nunca ter medo de mudar de ideia.




(A Analogia das caixas de bombons não é ideia minha, somente repliquei aqui com as minhas palavras.)


segunda-feira, 22 de maio de 2017

Conflito de visões : Origens Ideológicas das Lutas Políticas - Thomas Sowell (2011)

Uma visão foi descrita como um "ato cognitivo pré-analítico". É o que percebemos ou sentimos antes de construirmos qualquer raciocínio sistemático que poderia ser chamado de teoria, e muito menos antes de deduzirmos quaisquer consequências específicas como hipóteses que devem ser testadas mediante provas. Uma visão é nossa percepção de como o mundo funciona. (p. 18)

As batalhas políticas diárias são um pot-pourri de interesses específicos, emoções coletivas, conflitos de personalidade, corrupção e vários outros fatores. (p. 21)

Mesmo a pré-história especulativa do homem, como uma criatura selvagem na natureza, difere drasticamente do ser livre, inocente, concebido por Jean-Jacques Rousseaus, e o participante selvagem da guerra sangrenta de um contra todos, concebido por Thomas Hobbes. (p. 23)

Dentro da tradição da visão irrestrita, temos a convicção de que escolhas estúpidas e imorais explicam os males d mundo - e de que as políticas sociais mais sábias ou morais e humanas são a solução. (p. 46)

A visão restrita, pelo contrário, vê os males do mundo como resultado das escolhas restritas e infelizes disponíveis em função das limitações morais e intelectuais inerentes aos seres humanos. Para melhorar esses males e promover o progresso, os indivíduos confiam em características sistêmicas de certos processos sociais, tais como tradições morais, mercado ou famílias. Consideram esses processos mais como evoluídos do que concebidos - e confiam mais nesses padrões gerais de interação humana do que em políticas específicas concebidas para reduzir diretamente certos resultados para determinados indivíduos ou grupos. (p. 46)

Nem todos os penadores sociais se encaixam nessa dicotomia esquemática. John Stuart Mill e Karl Marx, por exemplo, não se encaixam por diversas razões. Outros assumem posições intermediárias entre as duas visões, ou vão de uma para outra. (p. 47)

Apesar dos avisos necessários, continua sendo um fenômeno importante e surpreendente a grande relação entre a maneira como a natureza humana é concebida no início e toda a concepção do conhecimento, moralidade, poder, tempo, racionalidade, guerra, liberdade e lei que compõe uma visão social. (p. 47)

Na visão restrita, qualquer conhecimento próprio do indivíduo é extremamente inadequado para o processo decisório social, e, frequentemente, mesmo para suas próprias decisões pessoais. Uma sociedade complexa e seu progresso são possíveis, portanto, somente por causa de várias organizações sociais que transmitem e coordenam o conhecimento a partir de inúmeros contemporâneos, assim como a partir de um número ainda maior de antepassados. (p. 49)

A visão irrestrita não tinha uma visão tão restrita do conhecimento humano ou de sua aplicação por meio da razão. Foram os modelos da visão irrestrita do século XVIII que criaram "a idade da razão", como ficou expresso naquela época no título do famosos livro de Thomas Paine. (p. 53)

Aqueles que defendem um ato de legislar deliberado por meio do ativismo da justiça não o fazem baseados na existência da maioria democrática, mesmo naquela geração específica, mas com base na existência de um processo intelectual e moralmente superior para o processo decisório. Quando Dworkin rechaçou o processo oposto como uma "fé estúpida", "uma teoria pessimista da natureza humana", "a filosofia curiosa de Edmundo Burke" e "o desenvolvimento caótico e sem escrúpulos da história", foi um prelúdio da afirmação de uma superioridade competente que neutraliza uma maioria democrática de contemporâneos, longe de excluir gerações anteriores. Para Dworkin, "uma sociedade mais igualitária é uma sociedade melhor mesmo quando seus cidadãos preferem a desigualdade". (p. 67)

É compatível com a visão irrestrita promover fins igualitários por meios desiguais, considerando as grandes diferenças entre aqueles que Mill chamou de "os mais sábios e melhores" e aqueles que não alcançaram ainda esse nível intelectual e moral.
No lado oposto, os partidários da visão restrita tendem, em geral, a se preocupar menos com a promoção da igualdade econômica e social e mais com os perigos de uma desigualdade de poder, produzindo uma elite governante articulada composta por racionalistas. (p. 68)

O homem de negócios socialmente responsável deveria, por exemplo, contratar pessoas desprovidas, investir em coisas que parecem mais necessárias para a sociedade do que as que fossem mais lucrativas para a sua empresa, bem como destinar parte da renda a atividades caritativas e culturais em vez de aplicar tudo em ações ou reinvestir em seus próprios negócios.
A visão restrita vê essas coisas como fora da alçada dos homens de negócios, levando em conta as mais amplas ramificações dessas decisões em um processo sistêmico complexo. De acordo com a visão restrita do conhecimento humano, o que cabe ao homem de negócios é a direção de sua firma individual para promover, dento da lei, sua prosperidade. É no efeito sistemático da concorrência, mais do que nas intenções individuais dos homens de negócios, que esta visão confia para produzir benefícios sociais. Segundo Adam Smith, é somente quando o homem de negócios "busca seu próprio ganho" que ele contribui - através do processo de concorrência - na promoção do bem social "mais efetivamente do que quando realmente tem a intenção de promovê-lo". (p. 70)

Os textos escritos pelos partidários da visão restrita têm muitos exemplos de consequências contraproducentes de políticas bem intencionadas. Porém, para os partidários da visão irrestrita, isso significa se ater somente a erros isolados que podem ser corrigidos, a fim de se opor a tendências que são socialmente benéficas como um todo. (p. 70)

Na visão restrita, o dever moral do homem de negócios é a fidelidade aos acionários, que lhe confiaram sua poupança, não a busca sincera do bem público por meio de doações caritativas, investimentos ou decisões relativas a contratações capazes de comprometer essa confiança. De forma semelhante, o dever moral do juiz é executar fielmente a lei que jurou respeitar, não mudar sinceramente aquela lei para produzir resultados melhores de acordo com o que vê. Dentro dessa visão, um dever moral de uma pessoa dotada de conhecimento é promover fielmente o processo intelectual entre seus alunos e leitores, não levá-los a conclusões específicas que ele sinceramente vê como as melhores para a sociedade. (p. 72)

É necessário observar que nenhuma das grandes visões históricas se mostra como 100% irrestrita ou 100% restrita. (p. 74)

Adam Smith considerava inapropriado que jovens gozassem da mesma confiança que os velhos. "Os mais s[abios e experientes são em geral os menos crédulos", disse ele, e isso dependia fundamentalmente do tempo: "Somente a sabedoria adquirida e a experiência podem ensinar a incredulidade, e muito frequentemente a ensinam o bastante". (p. 76)

A arrogância e o exibicionismo de intelectuais foram, do mesmo modo, temas recorrentes na obra de Burke - assim como os perigos que esses intelectuais representavam para a sociedade. Ele falou de suas "grandes teorias" para as quais teriam de se curvar o céu e a terra. Hobbes também via aqueles que "se veem como mais sábios e mais capazes de governar" como fontes de distração e de guerra civil. Da mesma forma, Hamilton via os intelectuais como perigosos, por causa de sua tendência de seguir "os fantasmas traiçoeiros de um espírito de inovação sempre sedento e nunca satisfeito". (p. 80)

Contudo, para os adeptos da visão irrestrita, os intelectuais são "precursores para seus pares na descoberta da verdade", segundo Godwin. (p. 81)

A visão restrita não é uma visão estática do processo social, tampouco uma visão de que o status quo deveria ser alterado. Pelo contrário, seu princípio central é a evolução. (p. 86)

Na visão restrita da natureza humana, esse tipo de desenvolvimento não tem probabilidade de se tornar geral, de tal forma que a injustiça de pagar a indivíduos recompensas imerecidas deve ser compensada pela injustiça de tirar da sociedade benefícios existentes, não pagando o suficiente para oferecer incentivos para sua produção e plena utilização. (p. 105)

Na visão irrestrita, a própria natureza humana é uma variável, e, de fato, a variável fundamental a ser mudada. (p. 106)

Quando há pessoas que vivem abaixo de algum nível econômico definido como pobreza, os adeptos da visão irrestrita tendem a querer subsidiá-los de alguma forma para produzir diretamente um resultado mais desejável na forma de um padrão de vida mais elevado. Os partidários da visão restrita voltam-se para incentivos de processo, criados por esses planos e suas consequências no comportamento futuro, não somente entre esses beneficiários específicos, mas também em relação a outros que podem se tornar menos cuidadosos quando se trata de evitar o desemprego, a gravidez em adolescentes ou outros fatores vistos como geradores da incidência geral de pobreza. (p. 113)

Essas mudanças podem ser repentinas, em que um evento em particular reorienta todo o pensamento de alguém, ou a mudança pode ser análoga à água que desgasta a pedra, de forma que uma visão imperceptivelmente desaparece, para ser substituída por um conjunto de mudanças dos pressupostos inerentes sobre o homem e o mundo. Esse segundo tipo de mudança pode não deixar um registro claro de quando ou como aconteceu, talvez nem uma consciência nas pessoas envolvidas, a não ser saber que as coisas não são mais vistas da mesma forma que já foram.
Algumas mudanças de visões tendem a ser associadas à idade. O clichê dos radicais aos vinte anos, que se tornam conservadores aos quarenta, data de muitas gerações. (p. 115)

O melhor tipo de mundo para o homem tal como é concebido por uma visão é desastroso para o homem segundo a concepção da outra visão. Os partidários das duas visões estão, portanto, predestinados a serem adversários em uma questão após a outra. (p. 119)

Nas duas visões, o ser hipotético define princípios sociais, mas o locus de controle continua a ser pessoas reais operando coletivamente por meio de representantes, segundo Rawls, e individualmente, de acordo com Smith. Uma estrutura social é um produto coletivo, tanto na visão restrita quanto na irrestrita, mas o exercício de controle contínuo é o que os separa dentro do autointeresse individual dos tomadores de decisão da visão restrita e os decisores representantes para a coletividade da visão irrestrita. (p. 124)

Uma determinada visão pode encaixar-se em qualquer ponto no continuum entre as visões restritas e irrestritas. Também há a possibilidade de combinação de elementos das duas visões de forma tanto consistente quanto inconsistente. O marxismo e o utilitarismo são exemplos clássicos de visões híbridas, embora de formas diferentes. (p. 125)

A teoria marxista da história é essencialmente uma visão restrita, com restrições cada vez menores ao longo dos séculos, terminando no mundo irrestrito do comunismo. (p. 125)

Nas palavras de Engels, "cada desejo individual é obstruído por todos os outros e o que emerge é algo que ninguém quis". (p. 127)

Bentham rejeitava a tomada de decisão na economia por representantes e dizia que um adulto livre e racional deveria ter a liberdade de fazer qualquer negociação financeira não fraudulenta de sua escolha. (p. 131)

O que está no âmago da diferença entre elas é saber se as capacidades e o potencial humanos permitem que decisões sociais sejam tomadas coletivamente através da racionalidade articulada de representantes, para produzir os resultados sociais específicos desejados. A questão crucial é, afinal, não o que é especificamente desejado (uma questão de premissas de valor), mas o que de fato pode ser alcançado (uma questão factual e de causa e efeito), embora, em termos práticos, objetivos considerados inalcançáveis sejam rejeitados, mesmo sendo reconhecidos como moralmente superiores em termos abstratos. (p. 135)

O fascismo apropriou-se de alguns aspectos simbólicos da visão restrita, sem os processos sistêmicos que lhe deram sentido. Foi uma visão irrestrita de governança que atribuiu a seus líderes uma abrangência de conhecimento e dedicação ao bem comum inteiramente incompatível com a visão cujos símbolos evocava.
Adeptos tanto da visão restrita quanto da irrestrita veem o fascismo como a extensão lógica da visão do adversário. Para os que estão na esquerda política, o fascismo é "a extrema direita". Inversamente, para Hayek, o "nacional socialismo" (nazismo) de Hitler foi de fato socialista em seu conceito e execução. (p. 137)

Segundo Condorcet, "uma verdadeira igualdade" requer que "mesmo as diferenças naturais entre homens sejam mitigadas" pela política social. Sem probabilidades iguais de alcançar determinados resultados, a igualdade formal era inadequada - quando não hipócrita - ,segundo a visão irrestrita. George Bernard Shaw, por exemplo, ridicularizou a igualdade formal de oportunidades: "Dê a seu filho uma caneta tinteiro e um punhado de papel, diga-lhe que agora ele tem uma oportunidade igual à minha de escrever peças e veja o que ele lhe dirá!". (p. 146)

Isso não queria apenas dizer que alguns têm pouco enquanto outros têm muito. Causa e efeito estão presentes: alguns têm pouco porque outros têm muito, segundo esse raciocínio que durante séculos fez parte da visão irrestrita. (p. 148)

A consciência sobre as desigualdades e a repulsa em relação a elas não se restringiam aos adeptos da visão irrestrita. Reações semelhantes têm sido comuns desde Adam Smith no século XVIII a Milton Friedman no século XX. (p. 149)

Na visão restrita de Friedman e de outros, acreditava-se que as situações de "exploração" podiam ser eliminadas de forma mais efetiva por características sistêmicas de uma economia competitiva do que por intervenção de líderes políticos em processos econômicos complexos que não podem compreender. O perigo não estava comente nas consequências adversas de sua intervenção na economia, porém mais nas horríveis consequências de uma concentração tão grande do poder político. Resumindo, as tentativas de igualar os resultados econômicos levam a uma maior - e mais perigosa - desigualdade do poder político. Esse foi o tema central de O Caminho da Servidão de Hayek, em que o objetivo de combinar simultaneamente liberdade e igualdade de resultados no socialismo democrático foi declarado como "inalcançável" enquanto resultado, mas perigoso enquanto um processo de mudança rumo ao despotismo.
Socialistas democratas não foram acusados de conspirar para instaurar um despotismo; eram, na verdade, considerados por Hayek indivíduos genuinamente humanos sem a "crueldade" necessária para atingir seus objetivos sociais, mas também eram vistos por ele como pavimentadores do caminho para outros - incluindo fascistas e comunistas - que concluiriam a destruição da liberdade depois de minar irremediavelmente os princípios de igualdade perante a lei e as limitações no poder político na busca da "ilusão de justiça social". (p. 152)

Hayek questionou "se é moral que homens se submetam ao poder da direção que teria de ser exercida para que os benefícios provenientes de indivíduos fossem significativamente descritos como justos ou injustos". (p. 153)

No mundo do século XVIII, em que a maior parte das pessoas era composta de camponeses, Godwin declarou que "o camponês passa pela vida, com algo da insensibilidade desprezível de uma ostra". Rousseau comparava as massas a "um inválido estúpido, pusilânime". Segundo Condorcet, a "raça humana ainda revolta o filósofo que contempla sua história". No século XX, George Bernard Shaw incluía a classe operária entre as pessoas "detestáveis" que "não têm o direito de viver". Ele dizia, ainda: "Eu ficaria desesperado se não soubesse que eles vão todos morrer logo, e não há necessidade alguma de que sejam substituídos por pessoas como eles".
Embora a visão irrestrita tenha caracterizado o igualitarismo como uma convicção de que as pessoas deveriam dividir de forma mais igual os benefícios materiais e de outros tipos da sociedade, ela tente a ver as capacidades existentes das pessoas como muito mais desiguais do que a visão restrita. Entre os economistas contemporâneos que propõem caminhos para países do Terceiro Mundo para sair da pobreza, aqueles que representam uma visão restrita (P. T. Bauer e T. W. Schultz, por exemplo) descrevem as massas de camponeses do Terceiro Mundo como um depósito de habilidades valiosas e capazes de adaptações significativas para mudar condições econômicas, contanto que as elites permitam que concorram no mercado, enquanto aqueles que são politicamente mais de esquerda, como Gunnar Myrdal, descrevem as massas de camponeses como extremamente atrasadas e redimíveis somente por meio dos esforços comprometidos da elite instruída. (p. 161)

Não é sobre o nível de igualdade que as duas visões discordam, mas sobre o que deve ser igualado. Na visão restrita, é o julgamento que deve ser exercido de forma igual e individual tanto quanto possível, sob a influência das tradições e dos valores provenientes da experiência de muitos, amplamente compartilhada, mais do que da articulação especial de poucos. Na visão irrestrita, são as condições materiais da vida que devem ser igualados sob a influência ou poder daqueles que têm as condições intelectuais e morais necessárias para fazer que o bem-estar de outros se torne sua preocupação específica. (p. 164)

Para os adeptos da visão restrita, as pessoas cometem crimes porque são humanas - porque colocam seus próprios interesses ou egos acima dos interesses, sentimentos ou vidas de outros. Partidários da visão restrita põem ênfase em estratagemas sociais para evitar o crime ou castigo, ou seja, para desencorajá-los. Mas para o partidário da visão irrestrita é difícil entender como alguém cometeria um crime terrível sem que houvesse uma causa específica, ainda que fosse a cegueira. (p. 171)

Enquanto Smith via a imposição de uma punição como uma tarefa dolorosa, adeptos da visão irrestrita viam essa questão como uma indulgência desnecessária na vingança, "um retrocesso embrutecedor para todo o horror da desumanidade do homem de tempos remotos". Com essa visão, o criminoso é visto como uma vítima - uma "pobre vítima", segundo palavras de Godwin - primeiramente, das circunstâncias especiais que provocaram o crime, e depois, de pessoas com sede de castigo. (p. 174)

O individualismo adquire significados totalmente diferentes nas duas visões. Na visão restrita, o individualismo significa deixar o indivíduo livre para escolher entre as oportunidades, recompensas sistematicamente geradas, e castigos provenientes de outros indivíduos também livres, sem se submeter a conclusões articuladas impostas pelo poder de entidades organizadoras como o governo, sindicatos ou cartéis. Todavia, na visão irrestrita, o individualismo refere-se ao (1) direito de indivíduos comuns "participarem" das decisões articuladas de entidades coletivas e ao (2) direito daqueles com a sabedoria e a virtude necessárias de terem alguma imunidade em relação a restrições sociais sistêmicas ou organizadas. (p. 178)

Não costuma surpreender dizer que as razões pelas quais o governo exerce o poder na economia também diferem nas duas visões. Na visão irrestrita, é uma questão de intenção, enquanto para a visão restrita, é uma questão de incentivos. A intenção do governo de proteger interesses públicos obriga-o a interferir na economia para desfazer o mal feito pelo poder econômico privado, de acordo com a visão irrestrita. Entretanto, o incentivo inerente ao governo no sentido de aumentar seu próprio poder leva-o a interferir frequentemente de forma desnecessária e maléfica, segundo a visão restrita. (p. 181)

Na visão irrestrita, para a qual os resultados e não os processos são fundamentais, se o comportamento escolhido por A mudar o comportamento de B, então A forçou B a se comportar de determinada forma. Por exemplo, segundo Tribe, se o governo se recusar a pagar abortos de mulheres indigentes, então ele provoca "partos forçados", fazendo, na verdade, com que "mulheres (pelo menos mulheres pobres) sejam incubadoras involuntárias", portanto, "negando às mulheres o poder sobre seu próprio corpo e futuro". (p. 194)

Os benefícios fundamentais dos direitos de propriedade foram concebidos como sociais, permitindo um processo econômico com maior eficiência, um processo social com menos discórdia e um processo político com mais poder e influência difusos do que o possível controle político subcentralizado da economia. (p. 214)

Independentemente de seus mecanismos ou detalhes, a justiça social tem sido o tema dominante da visão irrestrita, de Godwin a Rawls. Como outras formas de justiça, ela é concebida mais como um resultado do que como um processo. Porém, enquanto o imperativo da justiça social permeia a visão irrestrita, ele é praticamente inexistente na visão restrita. Pensadores sociais na tradição da visão restrita consideram seus aspectos humanos, assim como questões de eficácia, mas isso não implica que um resultado de distribuição de renda seja mais justo do que outro. F.A.Hayek é um dos poucos escritores da visão restrita que discute a justiça social - e ele a caracteriza como "absurda", uma "miragem", "uma invocação vazia", "uma superstição quase religiosa" e um conceito de que "não pertence à categoria do erro, mas à da estupidez". Outros contemporâneos na tradição da visão restrita - Milton Friedman e Richard Posner, por exemplo - não se incomodam em discuti-la, ainda que seja como algo a ser refutado.
O conceito de justiça social, portanto, representa os extremos do conflito de visões - uma ideia da maior importância para uma das visões e abaixo da crítica para a outra. (p. 221)

O que distingue a visão irrestrita não é o fato de prescrever preocupação humana em relação aos pobres, mas de ver as transferências de benefícios materiais ao menos afortunados não simplesmente uma questão de humanidade, mas, sobretudo, como uma questão de justiça. (p. 222)

Fundamentalmente para o conceito de justiça social é a noção de que indivíduos têm direito a alguma parte da riqueza produzida por uma sociedade simplesmente por serem membros daquela sociedade, independentemente de quaisquer contribuições individuais feitas ou não para a produção de tal riqueza. (p. 222)

Segundo Godwin: "O efeito produzido por essa doutrina condescendente é que a satisfação de nossos desejos fica à disposição de uns poucos, permitindo-lhes fazer demonstração de generosidade com o que de fato não lhes pertence, bem como comprar a submissão dos pobres mediante o pagamento de uma dívida". (p. 223)

Hayek via alguns defensores da justiça social como cinicamente cientes de participarem da concentração de poder; via, contudo, perigo maior naqueles que sinceramente promoviam o conceito com um fervor que inconscientemente prepara o caminho para outros - totalitaristas - intervirem depois da ruína de barreiras ideológicas, políticas e legais ao poder do governo, tornando sua tarefa fácil. Ele via o nazismo dessa forma, como "a culminância de uma longa evolução de pensamento" na Alemanha promovida por socialistas e outros que tinham objetivos muito diferentes dos nazistas, mas que fomentaram a erosão do respeito por regras legais a favor de imperativos de resultados sociais específicos.
O comunismo também foi visto por Hayek como um beneficiário residual da maneira de pensar promovida por pessoas que podem não ter o desejo de ver o comunismo triunfar. Segundo Hayek, a "justiça distributiva" é inerentemente "irreconciliável com o princípio e direito", e o ideal de um governo de leis e não de homens é tudo o que separa uma sociedade livre e o totalitarismo. Ele cita um escritor soviético que declarou que o "comunismo significa não a vitória da lei socialista, mas a vitória do socialismo sobre qualquer lei". Para Hayek, isso é o que a justiça social como objetivo ignorado afinal significa - uma alternativa para a justiça meramente "formal" como regras impessoais de um processo. (p. 228)

Muito do que a visão irrestrita vê como moralmente necessário a ser feito, a visão restrita vê como impossível ao homem fazer. (p. 231)

Um exemplo desse fenômeno é a declaração frequentemente repetida de que índices mais altos de lares desfeitos e de gravidez na adolescência entre os norte-americanos negros eram devidos ao "legado da escravidão". Somente depois de décadas de ampla repetição dessa afirmação foi feito um estudo abrangente factual, no qual se mostrou que lares desfeitos e gravidez na adolescência era de longe menos comuns entre os negros submetidos à escravidão e as gerações que vieram depois da emancipação do que as de hoje. Uma vez mais a questão não é que uma determinada conclusão estava equivocada, mas que uma afirmação ampla e sem fundamento não foi contestada ao longo de muitos anos porque era adequada para determinada visão. A capacidade de sustentar asserções sem evidências é outro sinal da força e persistência das visões. (p. 244)

As duas visões devem omitir coisas que existem na realidade, e que a maioria dos defensores dessas visões admitiria existir na realidade, por mais que discordassem sobre a prevalência ou o efeito dos fatores omitidos. (p. 245)

A crescente complexidade de teorias geralmente reflete, em parte, as crescentes dificuldades de defendê-las em suas formas mais puras. Dados empíricos florescentes, e formas ainda mais sofisticadas de analisá-los, podem não conseguir dar um único golpe fatal a qualquer uma das grandes visões contrárias que dominaram os dois últimos séculos. Porém tem havido alguns recuos estratégicos importantes dos dois lados. Nenhuma das visões pode manter com segurança o ar de verdade irrefutável que alguns de seus partidários do século XVIII tinham. (p. 247)

Valores são vitais. Mas a questão de que tratamos aqui é se antecedem ou seguem as visões. A conclusão de que provavelmente decorrem de visões mais do que as visões resultam deles não é simplesmente a conclusão desta análise em particular, mas é, ainda, demonstrada pelo comportamento real daqueles que têm o poder de controlar ideias por meio da sociedade, quer essas autoridades sejam seculares ou religiosas. (p. 251)

Adeptos da visão restrita e da irrestrita reconheceram há muito tempo que (...) o que é dito nessas lutas políticas não tem necessariamente ligação com a verdade, ou mesmo com o que qualquer um acredita ser a verdade. (p. 252)

Como alguns dos conceitos-chave usados pelos dois lados foram definidos originalmente nos termos da visão restrita, os adeptos da visão irrestrita tiveram que diferenciar seus conceitos como "verdadeira" liberdade, ou "verdadeira" igualdade, por exemplo, em oposição simplesmente a liberdade "formal" ou igualdade "formal". Entretanto, a ascendência posterior da visão irrestrita obrigou os adeptos da visão restrita a ter uma postura defensiva, na qual tentavam estabelecer as definições mais formais, restritas desses termos como características de processo. (p. 259)