sábado, 18 de março de 2017

A viagem do descobrimento : a verdadeira história da expedição de Carbral - Eduardo Bueno (2006)

Em primeiro lugar, se já não era conhecida, a existência desta "nova" terra era, quando menos, previsível. Muitos anos antes de Vasco da Gama ter avistado aves voando "muito rijas" em meio ao oceano, os portugueses estavam convictos de que outras ilhas deveriam existir a oeste dos Açores e da Madeira - onde os ventos, por vezes, faziam aportar a pena explorá-las. A Índia - com suas especiarias e suas sedas - com certeza ficava na direção oposta. (p. 12)

O nome "Brazil" provém do celta bress verbo ingês to bless (abençoar). Hy Brazil, portanto, significa " Terra Abençoada". Desde 1351 até pelo menos 1721 o nome Hy Brazil podia ser visto em mapas e globos europeus, sempre indicando uma ilha localizada no oceano Atlântico. Até 1624, expedições ainda eram enviadas à sua procura. (p. 13)

Após o sermão, pronunciado à luz de tochas, D. Diogo benzeu uma bandeira da Ordem de Cristo - ordem militar originária dos cavaleiros Templários da Idade Média - e, retirando-a do centro do altar, a entregou a el-Rei. D, Manoel passou-a então a Pedro Álvares Cabral, o nobre cavaleiro que se escalara para chefiar aquela missão e que havia convidado para sentar junto a si, sob a cortina franjada do dossel. (p. 15)

Em segundo lugar, D. Manoel ficara preocupado com a guerra que rebentara entre Vasco da Gama e o Samorim ("senhor do mar") de Calicute. Ao apresentar-se diante daquele orgulhoso soberano hindu, em maio de 1498, Gama dissera ser o representante de um rei "muito rico e poderoso", mas chegara à Índia navegando em navios pequenos e mal aparelhados. O Samorin desprezou os presentes simplórios que Gama lhe ofereceu e virtualmente o ignorou. Ofendido, o capitão português retornou ao navio e fez soar seus canhões. Informado desses incidentes pelo próprio Vasco, D. Manoel decidiu enviar o mais rapidamente possível uma frota "muito poderosa em armas e em gente luzidia" - não só pronta para a guerra como repleta de presentes caros e capitães de linhagem nobre. (p. 17)

Todos esses capitães - assim como os principais pilotos e mestres - eram homens muito bem pagos. Num livro clássico (embora controverso) chamado Lendas da Índia, escrito em 1561, o cronista Gaspar Correia listou os salários dos integrantes da armada de Cabral. A maior remuneração cabia, evidentemente, ao comandante-chefe: sabe-se que Pedro Álvares Cabral recebeu 10 mil cruzados pela viagem. Cada cruzado valia o equivalente a 3,5 gramas de ouro. Além dessa pequena fortuna, Cabral embolsaria ainda o lucro referente a 500 quintais de pimenta - ou inacreditáveis 30 toneladas - que ele tinha o direito de comprar, às próprias custas, e transportar gratuitamente no navio. A Coroa se comprometia a adquirir essa pimenta pelo valor correspondente em Lisboa - cerca de sete vezes o preço na Índia. O capitão-mor podia trazer ainda dez caixas forras (ou livres de impostos) de qualquer outra especiaria.
Os capitães das demais naus receberiam mil cruzados sobre cada cem tonéis de arqueação de seus navios (a maioria, portanto, embolsou cerca de 1,8 mil cruzados), acrescidos de seis caixas forras e da possibilidade de adquirir cinquenta quintais (ou 300 kg) de pimenta para revenda em Lisboa. Mestres e pilotos ganharam 500 cruzados, quatro caixas forras e 30 quintais de pimenta cada. Os marinheiros recebiam 10 cruzados por mês, uma caixa forra e 10 quintais de pimenta, cabendo aos grumetes a metade disso. Ainda segundo Gaspar Correia, os bombardeiros tinham a mesma remuneração que os marinheiros. Os demais soldados - chamados de "gente de armas", em contraposição a "gente do mar" - ganhavam 5 cruzados por mês e podiam transportar 3 quintais de pimenta.
Todos os integrantes da armada ainda teriam direito aos bens saqueados aos povos que entrassem em luta com os portugueses. A divisão destas "presas de guerra" era feita da seguinte forma: primeiro, o capitão-mor tirava sua parte (chamada "jóia"), cujo valor não poderia exceder 500 cruzados. Depois, era separado o quinto do rei. A seguir, o butim era dividido em três partes iguais - duas para o próprio rei, "pela armação, mantimentos e artilharia do navio", e a parte restante dividida na proporção de quinze partes para o capitão-mor, dez partes para cada capitão, quatro partes para os pilotos, três partes para os mestres, duas partes para as "gentes do mar" e duas para as "gentes de armas".
Assim sendo, qualquer tripulante que retornasse daquela viagem com certeza ascenderia economicamente na escala social. Além do mais, a "gente casada" recebera um ano de salário adiantado, "para proteção de suas famílias". (p. 25)

A vida a bordo tornava-se então mais monótona do que o habitual. Quase todas as atividades de lazer eram proibidas. Ainda assim, sempre que possível, os marujos dedicavam-se ao carteado. Quando os padres os pegavam em flagrante, "tomavam os naipes e os atiravam ao mar". Os romances de cavalaria, tidos como "uma armadilha do demônio que causava grandes danos à alma", também eram vetados. Havia teatro a bordo, mas sempre de teor religioso. Enfadonho e repetitivo, cada novo dia era anunciado pelo canto dos galos e pelo balido das ovelhas, que os capitães tinham direito de levar para bordo. (p. 39)

De fato, no início de julho de 1415, o papa Gregório XII publicara uma bula concedendo "absolvição plenária" a todos que viessem a morrer naquela tentativa de "lavar as mãos no sangue dos infiéis". Mas apenas oito portugueses iriam tombar ao longo de um combate desigual. (p. 45)

Embora um de seus objetivos fosse o de "conquistar almas", D. Henrique se revelaria um herdeiro genuíno do fanatismo dos templários, pois, além de virar o padrinho das explorações ultramarinas, tornou-se também o padroeiro da saga escravocrata dos europeus. De fato, apesar dos recursos da Ordem de Cristo serem imensos, as viagens patrocinadas por D. Henrique eram caras e deficitárias. Só depois que seus navios começaram a trazer os primeiros escravos a Portugal, em 1444, o Infante obteve lucro com a aventura exploratória que ele iniciara em 1419. (p. 53)

De acordo com o historiador Jaime Cortesão, houve, porém, uma diferença fundamental entre os dois episódios: ao contrário do que Gama fizera - e, antes dele, todos os navegantes lusos que percorriam a costa da África -, Cabral e seus homens não mostraram especiaria alguma para os índios do Brasil. Para Cortesão, esse indício é forte o bastante para comprovar que os lusos, naquele instante, já sabiam que estavam numa terra sem qualquer relação com a África ou com a Ásia. (p. 83)

Alguns historiadores vêem nessa "temeridade" de Cabral um sinal claro de que ele tinha "deliberado propósito de fazer escalas em terras ocidentais". (p. 84)

A carta de Mestre João se tornaria ainda mais famosa e polêmica porque, em determinado trecho dela, o médico-astrônomo diz: "Mande Vossa Alteza trazer o mapa-múndi que tem Pero Vaz Bisagudo e poderá ver Vossa Alteza o sítio onde se localiza essa terra". (p. 88)

Embora tenham passado dez dias junto a esse belo regato - e já estivessem em viagem havia quase dois meses -, não havia notícia de que qualquer dos homens de Cabral tenha tomado banho. (p. 89)

Após a cerimônia, frei Henrique subiu em uma cadeira, pregou o Evangelho e falou da missão "tão santa e virtuosa" que aqueles homens estavam desempenhando. Em menos de vinte dias, quase metade deles estaria morta, engolida por um naufrágio no Cabo da Boa Esperança. Dali a oito meses, mortos também estariam quase todos aqueles freis - que, agora que a missa acabara, distribuíam aos índios os crucifixos de estanho que Nicolau Coelho levara para a Índia em sua primeira viagem. (p. 91)

Na segunda metade do século XVI, quando o rei D. Manoel, o capitão-mor Pedro Álvares Cabral e o escrivão Pero Vaz de Caminha já estavam mortos havia mais de duas décadas, começaria a surgir em Lisboa a tese de que o Brasil fora descoberto por acaso. Tal teoria foi obra dos cronistas e historiadores oficiais da corte. Fernão Lopes de Castanheda, em História do Descobrimento e Conquista da Índia (publicado em 1541), João de Barros, autor de Décadas da Ásia (de 1552), Damião de Góes, que escreveu a Crônica do Felicíssimo Rei D. Manoel (em 1558), e Gaspar Correia, em Lendas da Índia (de 1561), afirmaram, todos, que a descoberta de Cabral fora fortuita e involuntária. A tese, tão de acordo com o desprezo que a Coroa reservava ao Brasil, logo se tornou verdade histórica. (p. 105)

Na verdade, a leitura atenta da carta de Caminha e da Relação do Piloto Anônimo parece revelar que tudo na viagem de Cabral decorreu na mais absoluta normalidade e que a abertura de seu rumo para oeste foi proposital. (106)


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