domingo, 5 de março de 2017

A teia da vida - Uma nova compreensão científica dos sistemas vivos - Fritjof Capra (2006)

Isto sabemos, todas as coisas estão ligadas como o sangue que une uma família...
Tudo o que acontece com a Terra, acontece com os filhos e filhas da Terra.
O homem não tece a teia da vida; ele é apenas um fio.
Tudo o que faz à teia, ele faz a si mesmo. (p. 9)

O problema era de percepção. Exatamente a questão central trabalhada por Capra. Os executivos em questão - por mais boa vontade que pudessem ter e por mais esforço que viessem a fazer - não estavam com seus respectivos "modelos mentais" adequadamente preparados para enxergar as conexões entre a vida empresarial e os conceitos da "Nova Ciência". (p. 14)

Em conversas recentes com Capra, uma de suas colocações que mais me impactou foi sobre como nossas percepções são interrompidas pelo "reconhecimento". Muitas vezes, quando estamos tentando perceber algo à nossa frente, o processo é interrompido por um atual arcabouço mental. Nesse momento, nosso processo "neutro" de percepção é interrompido e "rotulamos" a coisa como algo já conhecido, poupando-nos o trabalho de desvendar o inédito. (p. 14)

A Teia da Vida é um livro de excepcional relevância para todos nós - independentemente de nossa atual atividade. Sua maior contribuição no desafio que ele nos coloca na busca de uma compreensão maior da realidade em que vicemos. É um livro provocativo que nos desancora do fragmentário e do "mecânico". É um livro que nos impele adiante, em busca de novos níveis de consciência, e assim nos ajuda a enxergar com mais clareza, o extraordinário potencial e o propósito da vida. E também a admitir a inexorabilidade de certos processos da vida, convivendo lado a lado com as infinitas possibilidades disponíveis, as quais encontram-se sempre à mercê de nossa competência em acessá-las.
Minha própria experiência é que quanto mais entendemos a grande realidade na qual vivemos, mais humildes nos tornamos. Adquirimos um respeito excepcional por todos os seres vivos - sem qualquer exclusão. Passamos a ter um relacionamento melhor com todos. Desenvolvemos uma nova ética, não nos deixando levar por falsos valores. Conseguimos viver sem ansiedade, com mais flexibilidade e tolerância. (p. 16)

A tradição intelectual do pensamento sistêmico, e os modelos e teorias sobre os sistemas vivos desenvolvidos nas primeiras décadas deste século, formam as raízes conceituais e históricas do arcabouço científico discutido neste livro. De fato, a síntese das teorias e dos modelos atuis que proponho aqui pode ser vista como um esboço de uma teoria emergente sobre os sistemas vivos, que oferece uma visão unificada de mente, matéria e vida. (p. 20)

Nossos líderes não só deixam de reconhecer como diferentes problemas estão interrelacionados; eles também se recusam a reconhecer como as suas assim chamadas soluções afetam as gerações futuras. A partir do ponto de vista sistêmico, as únicas soluções viáveis são as soluções "sustentáveis". O conceito de sustentabilidade adquiriu importância-chave no movimento ecológico e é realmente fundamental. Lester Brown, do Worldwatch Institute, deu uma definição simples, clara e bela: "Uma sociedade sustentável é aquela que satisfaz suas necessidades sem diminuir as perspectivas das gerações futuras". Este, em resumo, é o grande desafio do nosso tempo: criar comunidades sustentáveis - isto é, ambientes sociais e culturais onde podemos satisfazer as nossas necessidades e aspirações sem diminuir as chances de gerações futuras. (p. 24)

Uma visão holística, digamos, de uma bicicleta significa der a bicicleta como um todo funcional e compreender, em conformidade com isso, as interdependências da suas partes. Uma visão ecológica da bicicleta inclui isso, mas acrescenta-lhe a percepção de como a bicicleta está encaixada no seu ambiente natural e social - de onde vêm as matérias-primas que entram nela, como foi fabricada, como seu uso afeta o meio ambiente natural e a comunidade pela qual ela é usada, e assim por diante. (p. 25)

É interessante notar aqui a notável conexão nas mudanças entre pensamento e valores. Ambas podem ser vistas como mudanças da auto-afirmação para a integração. Essas duas tendências - a auto-afirmativa e a integrativa - são, ambas, aspectos essenciais de todos os sistemas vivos. Nenhuma delas é, intrinsecamente, boa ou má. O que é bom, ou saudável, é um equilíbrio dinâmico; o que é mau, ou insalubre, é o desequilíbrio - a ênfase excessiva em uma das tendências em detrimento da outra. (p. 27)

Uma das coisas que notamos quando examinamos esta tabela é que os valores auto-afirmativos - competição, expansão, dominação - estão geralmente associados com homens. De fato, na sociedade patriarcal, eles não apenas são favorecidos como também recebem recompensas econômicas e pode político. (p. 27)

O poder, no sentido de dominação sobre os outros, é auto-afirmação excessiva. A estrutura social na qual é exercida de maneira mais efetiva é a hierarquia. De fato, nossas estruturas políticas, militares e corporativas são hierarquicamente ordenadas, com os homens geralmente ocupando os níveis superiores, e as mulheres, os níveis inferiores. A maioria desses homens, e algumas mulheres, chegaram a considerar sua posição na hierarquia como parte de sua identidade, e, desse modo, a mudança para um diferente sistema de valores gera neles medo existencial. (p. 28)

Durante a revolução científica no século XVII, os valores eram separados dos fatos, e desde essa época tendemos s acreditar que os fatos científicos são independentes daquilo que fazemos, e são, portanto, independentes dos nossos valores. (p. 28)

O vínculo entre ecologia e psicologia, que é estabelecido pela concepção de eu ecológico, tem sido recentemente explorado por vários autores. A ecologista profunda Joanna Macy escreve a respeito do "reverdecimento do eu", o filósofo Warwick Fox cunhou o termo "ecologia transpessoal", e o historiador cultural Theodore Roszak utiliza o termo "ecopsicologia" para expressar a conexão profunda entre esses dois campos, os quais, até muito recentemente, eram completamente separados. (p. 29)

A tensão básica é a tensão entre as partes e o todo. A ênfase nas partes tem sido chamada de mecanicista, reducionista ou atomística; a ênfase no todo, de holística, organísmica ou ecológica. Na ciência do século XX, a perspectiva holística tornou-se conhecida como "sistêmica", e a maneira de pensar que ela implica passou a ser conhecida como "pensamento sistêmico". Neste livro, usarei "ecológico" e "sistêmico" como sinônimo, sendo que "sistêmico" é apenas o termo científico mais técnico. (p. 33)

Ao contrário de Platão, Aristóteles acredita que a forma não tinha existência separada, mas era imanente à matéria. Nem poderia a matéria existir separadamente da forma. A matéria, de acordo com Aristóteles, contém a natureza essencial de todas as coisas, mas apenas como potencialidade. Por meio da forma, essa essência torna-se real, ou efetiva. O processo de auto-realização da essência nos fenômenos efetivos é chamado por Aristóteles de enteléquia ("autocompletude"). É um processo de desenvolvimento, um impulso em direção à auto-realização plena. Matéria e forma são os dois lados desse processo, apenas separáveis por meio da abstração. (p. 34)

Galileu Galilei expulsou a qualidade da ciência, restringindo esta última ao estudo dos fenômenos que podiam ser medidos e quantificados. (p. 34)

René Descartes criou o método do pensamento analítico, que consiste em quebrar fenômenos complexos em pedaços a fim de compreender o comportamento do todo a partir das propriedades das suas partes. (p. 34)

O entendimento da forma orgânica também desempenhou um importante papel na filosofia de Immanuel Kant, que é frequentemente considerado o maior dos filósofos modernos. Idealista, Kant separava o mundo fenomênico de um mundo de "coisas-em-si". Ele acreditava que a ciência só poderia oferecer explicações mecênicas, mas afirmava que em áreas onde tais explicações eram inadequadas, o conhecimento científico precisava ser suplementado considerando-se a natureza como sendo dotada de propósito. A mais importante dessas áreas, de acordo com Kant, é a compreensão da vida. (p. 36)

Essa visão da Terra como estando viva tinha, naturalmente, uma longa tradição. Imagens míticas da Terra Mãe estão entre as mais antigas da história religiosa humana. Gaia, a Deusa Terra, era cultuada como a divindade suprema na Grécia antiga, pré-helênica. Em épocas ainda mais remotas, desde o neolítico e passando pela Idade de Bronze, as sociedades da "velha Europa" adoravam numerosas divindades femininas como encarnações da Mãe Terra. (p. 36)

As descobertas de Pasteur levaram a uma "teoria microbiana das doenças", na qual as bactérias eram vistas como a única causa da doença. essa visão reducionista eclipsou uma teoria alternativa, que fora professada alguns anos antes por Claude Bernard, o fundador da moderna medicina experimental, Bernard insistiu na estreita e íntima relação entre um organismo e o seu meio ambiente interno, e foi o primeiro a assinalar que cada organismo também tem um meio ambiente interno, no qual vivem seus órgãos e tecidos. Bernard observou que, num organismo saudável, esse meio ambiente interno permanece essencialmente constante, mesmo quando o meio ambiente externo flutua consideravelmente. Seu conceito de constância do meio ambiente interno antecipou a importante noção de homeostase, desenvolvida por Walter Cannon na década de 20. (p. 37)

Como os teóricos sistêmicos enunciariam várias décadas mais tarde, o todo é mais do que a soma de suas partes.
Os vitalistas e os biólogos organísmicos diferem nitidamente em suas respostas à pergunta: "Em que sentido exatamente o todo é mais que a soma de suas partes"? Os vitalistas afirmam que alguma entidade, força ou campo não-físico deve ser acrescentada às leis da física e da química para se entender a vida. Os biólogos organísmicos afirmam que o ingrediente adicional é o entendimento da "organização", ou das "relações organizadoras". (p. 38)

A ideia vitalista foi revivida recentemente, sob uma forma muito mais sofisticada, por Rupert Sheldrake, que postula a existência de campos morfogenéticos ("geradores de forma") não-físicos como os agentes causais do desenvolvimento e da manutenção da forma biológica. (p. 39)

O bioquímico Lawrence Henderson foi influente no seu uso pioneiro do termo "sistema" para denotar tanto organismos vivos como sistemas sociais. Dessa época em diante, um sistema passou a significar um todo integrado cujas propriedades essenciais surgem das relações entre suas partes, e "pensamento sistêmico", a compreensão de um fenômeno dentro do contexto de um todo maior. Esse é, de fato, o significado raiz da palavra "sistema", que deriva do grego synhistanai ("colocar junto"). Entender as coisas sistematicamente significa, literalmente, colocá-las dentro de um contexto, estabelecer a natureza de suas relações. (p. 39)

Desde os primeiros dias da biologia organísmica, essas estruturas multiniveladas foram denominadas hierarquias. Entretanto, esse termo pode ser enganador, uma vez que deriva das hierarquias humanas, que são estruturas de dominação e de controle absolutamente rígidas, muito diferentes da ordem multinivelada que encontramos na natureza. Veremos que a importante concepção de rede - a teia da vida - fornece uma nova perspectiva sobre as chamadas hierarquias da natureza. (p. 40)

O grande impacto que adveio com a ciência do século XX foi a percepção de que os sistemas não podem ser entendidos pela análise. As propriedades das partes não são propriedades intrínsecas, mas só podem ser entendidas dentro do contexto do todo mais amplo. Desse modo, a relação entre as partes e o todo foi revertida. Na abordagem sistêmica, as propriedades das partes podem ser entendidas apenas a partir da organização do todo. Em consequência disso, o pensamento sistêmico concentra-se não em blocos de construção básicos, mas em princípios de organização básicos. O pensamento sistêmico é "contextual", o que é o oposto do pensamento analítico. A análise significa isolar alguma coisa a fim de entendê-la; o pensamento sistêmico significa colocá-la no contexto de um todo mais amplo. (p. 41)

No formalismo da teoria quântica, essas relações são expressas em termos de probabilidades, e as probabilidades são determinadas pela dinâmica do sistema todo. Enquanto que na mecânica clássica as propriedades e o comportamento das partes determinam as do todo, a situação é invertida na mecânica quântica: é o todo que determina o comportamento das partes. (p. 42)

Na virada do século, o filósofo Christian von Ehrenfels caracterizou uma Gestalt afirmando que o todo é mais do que a soma de suas partes, reconhecimento que se tornaria, mais tarde, a fórmula-chave dos pensadores sistêmicos. (p. 42)

Em última análise - como a física quântica mostrou de maneira tão dramática - não há partes, em absoluto. Aquilo que denominamos parte é apenas um padrão numa teia inseparável de relações. (p. 47)

O objetivo de Bogdanov foi o de formular uma "ciência universal da organização". Ele definiu forma organizacional como "a totalidade de conexões entre elementos sistêmicos", que é praticamente idêntica à nossa definição contemporânea de padrão de organização. Utilizando os termos "complexo" e "sistema" de maneira intercambiável, Bogdanov distinguiu três tipos de sistemas: complexos organizados, nos quais o todo é maior que a soma de suas partes; complexos desorganizados, nos quais o todo é menor que a soma de suas partes; e complexos neutros, nos quais as atividades organizadora e desorganizadora se cancelam mutuamente. (p. 52)

"Somos apenas redemoinhos num rio de águas em fluxo incessante", escreveu Wiener em 1950. "Não somos matéria-prima que permanece, mas padrões que se perpetuam". (p. 56)

Seus diálogos com Wiener e com outros ciberneticistas exerceram um duradouro impacto sobre o trabalho subsequente de Bateson. Foi um pioneiro na aplicação do pensamento sistêmico à terapia da família, desenvolveu um modelo cibernético do alcoolismo e é autor da teoria da dupla ligação da esquizofrenia, que exerceu um dos maiores impactos sobre os trabalhos de R. D. Laing e de muitos outros psiquiatras. No entanto, a contribuição mais importante de Bateson à ciência e à filosofia talvez tenha sido sua concepção de mente, baseada em princípios cibernéticos, que ele desenvolveu na década de 60. Esse trabalho revolucionário abriu as portas para a compreensão da natureza da mente como um fenômeno sistêmico, e se tornou a primeira tentativa bem-sucedida feita na ciência para superar a divisão cartesiana entre mente e corpo. (p. 59)

Tomando uma postura essencialmente behaviorista, eles argumentaram que o comportamento de qualquer máquina ou organismo que envolva auto-regulação por meio de realimentação poderia ser chamado de "propositado", pois é comportamento direcionado para um objetivo. Eles ilustraram seu modelo desse comportamento dirigido para uma meta com numerosos exemplos - um gato apanhando um rato, um cão seguindo um rastro, uma pessoa levando um copo em uma mesa, e assim por diante - e os analisaram com base nos padrões de realimentação circulares subjacentes.
Wiener e seus colegas também reconheceram a realimentação como o mecanismo essencial da homeostase, a auto-regulação que permite aos organismos vivos se manterem num estado de equilíbrio dinâmico. (p. 61)

Se o padrão lógico circular da realimentação de auto-equilibração não foi reconhecido antes da cibernética, o da realimentação de auto-reforço já era conhecido desde centenas de anos atrás, na linguagem coloquial, como um "círculo vicioso". (p. 64)

Há outras metáforas comuns para se descrever fenômenos de realimentação de auto-reforço. A "profecia que se auto-realiza", na qual temores originalmente infundados levam a ações que fazem os temores se tornarem verdadeiros, e o "efeito popularidade" - a tendência de uma causa para ganhar apoio simplesmente devido ao número crescente dos que aderem a ela - são dois exemplos bem-conhecidos. (p. 64)

Nas décadas de 50 e de 60, Ross Ashby tornou-se o principal teórico do movimento cibernético. Assim como McCulloch, Ashby era um neurologista por formação profissional, mas foi muito mais longe do que McCulloch, investigando o sistema nervoso e construindo modelos cibernéticos para os processos neurais. Em seu livro Design for a Brain, Ashley tentou explicar, de forma puramente mecanicista e determinista, o comportamento adaptativo singular do cérebro, sua capacidade para a memória e outros padrões de funcionamento do cérebro. "Será presumido", escreveu ele, "que uma máquina ou um animal se comportaram de certa maneira num certo momento porque sua natureza física e química nesse momento não lhes permitia outra ação". (p. 66)

Essa previsão é hoje tão absurda quanto o era há trinta e oito anos, e no entanto ainda se acredita amplamente nela. (p. 67)

Recentes desenvolvimentos da ciência cognitiva tornaram claro o fato de que a inteligência humana é totalmente diferente da inteligência da máquina, ou "inteligência artificial". O sistema nervoso humano não processa nenhuma informação (no sentido de elementos separados que existem já prontos no mundo exterior, a serem apreendidos pelo sistema cognitivo), mas interage com o meio ambiente modulando continuamente sua estrutura. Além disso, os neurocientistas descobriram fortes evidências de que a inteligência humana, a memória humana e as decisões humanas nunca são completamente racionais, mas sempre se manifestam coloridas por emoções, como todos sabemos a partir da experiência. Nosso pensamento é sempre acompanhado por sensações e por processos somáticos. Mesmo que, com frequência, tendamos a suprimir estes últimos, sempre pensamos também com o nosso corpo; e uma vez que os computadores não têm um tal corpo, problemas verdadeiramente humanos sempre serão estrangeiros à inteligência deles.
Essas condições implicam no fato de que certas tarefas nunca deveriam ser deixadas para os computadores, como Joseph Weizenbaum afirmou enfaticamente em seu livro clássico Computer Power and Human Reason. Essas tarefas incluem todas aquelas que exigem qualidades humanas genuínas, tais como sabedoria, compaixão, respeito, compreensão e amor. Decisões e comunicações que exigem essas qualidades desumanizarão nossas vidas se forem feitas por computadores. Citando Weizenbaum:
"Deve-se traçar uma linha divisória entre inteligência humana e inteligência de máquina. Se não houver essa linha, então os defensores da psicoterapia computadorizada poderão ser apenas os arautos de uma era na qual o homem, finalmente, seria reconhecido como nada mais que um mecanismo de relojoaria. ... A própria formulação da pergunta: 'O que um juiz (ou um psiquiatra) sabe que não podemos dizer a um computado?' é uma monstruosa obscenidade." (p. 68)

Vamos nos lembrar de que a máquina automática é o equivalente econômico preciso da mão-de-obra escrava. Qualquer mão-de-obra que compete com a mão-de-obra escrava deve aceitar as condições econômicas da mão-de-obra escrava. Está perfeitamente claro que isso produzirá uma situação de desemprego em comparação com a qual a atual recessão, e até mesmo a depressão da década de 30, parecerão uma divertida piada. (p. 69)

O empobrecimento espiritual e a perda da diversidade cultural por efeito do uso excessivo de computadores é especialmente sério no campo da educação. Como Neil Postman comentou de maneira sucinta: "Quando um computador é utilizado para a aprendizagem, o significado de 'aprendizagem' muda". O uso de computadores na educação é, com frequência, saudado como uma revolução que transformará praticamente todas as facetas do processo educacional. Essa visão é vigorosamente promovida pela poderosa indústria dos computadores, que encoraja os professores a utilizarem computadores como ferramentas educacionais em todos os níveis - até mesmo no jardim-de-infância e no período pré-escolar! - sem sequer mencionar os muitos efeitos nocivos que podem resultar dessas práticas irresponsáveis.
O uso de computadores nas escolas baseia-se na visão, hoje obsoleta, dos seres humanos como processadores de informações, o que reforça continuamente concepções mecanicistas errôneas sobre o pensamento, o conhecimento e a comunicação. A informação é apresentada como a base do pensamento, enquanto que, na realidade, a mente humana pensa com ideias e não com informações. Como Theodore Roszak mostra detalhadamente em The Cult of Information, as informações não criam ideias; as ideias criam informações. Ideias são padrões integrativos que não derivam da informação, mas sim, da experiência.
No modelo do computador para a cognição, o conhecimento é visto como livre de contexto e de valor, baseado em dados abstratos. Porém, todo conhecimento significativo é conhecimento contextual, e grande parte dele é tácita e vivencial. De maneira semelhante, a linguagem é vista como um conduto ao longo do qual são comunicadas informações "objetivas". Na realidade, como C. A. Bowers argumentou eloquentemente, a linguagem é metafórica, transmitindo entendimentos tácitos compartilhados no âmbito de uma cultura. Com relação a isso, também é importante notar que a linguagem utilizada por cientistas do computador e por engenheiros está cheia de metáforas derivadas dos militares - "comando", "evasão", "segurança contra falhas", "piloto", "alvo", e assim por diante - que introduzem tendências culturais, reforçam estereótipos e inibem certos grupos, inclusive jovens meninas em idade escolar, de participar plenamente da experiência  de aprendizagem. Um motivo semelhante de preocupação é a ligação entre computadores e violência, e a natureza militarista da maioria dos videogames para computadores.
Depois de dominar por trinta anos as pesquisas sobre o cérebro e a ciência cognitiva, e de criar um paradigma para a tecnologia que ainda está amplamente difundido nos dias atuais, o dogma do processamento de informações foi finalmente questionado de maneira séria. Argumentos críticos foram apresentados até mesmo durante a fase pioneira da cibernética. Por exemplo, argumentou-se que nos cérebros reais não existem regras: não há processador lógico central, e as informações não estão armazenadas localmente. Os cérebros parecem operar com base numa conexidade generalizada, armazenando distributivamente as informações e manifestando uma capacidade de auto-organização que jamais é encontrada nos computadores. No entanto, essas ideias alternativas foram eclipsadas em favor da visão computacional dominante, até que reemergiram trinta anos mais tarde, na década de 70, quando os pensadores sistêmicos ficaram fascinados por um novo fenômeno de nome evocativo: auto-organização. (p. 70)

Manfred Eigen, prêmio Nobel de química e diretor do Instituto Max Plack de Física-Química, em Göttingen, propôs, no começo da década de 70, que a origem da vida na Terra pode ter sido o resultado de um processo de organização progressiva em sistemas químicos afastados do equilíbrio, envolvendo "hiperciclos" de laços de realimentação múltiplos. Eigen, com efeito, postulou uma fase pré-biológica de evolução, na qual processos de seleção ocorrem no domínio molecular "como uma propriedade material inerente em sistemas de reações especiais", e introduziu o termo "auto-organização molecular" para descrever esses processos evolutivos pré-biológicos. (p. 85)

Assim, esses hiperciclos químicos são sistemas suto-organizadores que não podem ser adequadamente chamados de "vivos" porque carecem de algumas características básicas da vida. No entanto, devem ser entendidos como precursores dos sistemas vivos. Parece que a lição a ser aprendida aqui é a de que as raízes da vida atingem o domínio da matéria não-viva.
Uma das mais notáveis propriedades dos hiperciclos, que os torna semelhantes à vida, é a de que eles podem evoluir passando por instabilidades e criando níveis de organização sucessivamente mais elevados, que se caracterizam por diversidade crescente e pela riqueza de componentes e de estruturas. Eigen assinala que os novos hiperciclos criados dessa maneira podem competir por seleção natural, e se refere explicitamente à teoria de Prigogine para descrever o processo todo: "A ocorrência de uma mutação com vantagem seletiva corresponde a uma instabilidade, que pode ser explicada com a ajuda da [teoria] ... de Prigogine e Glansdorff". (p. 86)

A partir dessas pesquisas, duas questões principais cristalizaram-se na mente de Maturana. Como ele lembrou mais tarde: "Entrei numa situação na qual minha vida acadêmica ficou dividida, e me orientei para a procura das respostas a duas perguntas que pareciam seguir em sentidos opostos, a saber: 'Qual é a organização da vida?' e 'O que ocorre no fenômeno da percepção?'" (p. 87)

A segunda conclusão que Maturana extraiu do fechamento circular do sistema nervoso corresponde a uma compreensão radicalmente nova da cognição. Ele postulou que o sistema nervoso é não somente auto-organizador mas também continuamente auto-referente, de modo que a percepção não pode ser vista como a representação de uma realidade externa, mas deve ser entendida como a criação contínua de novas relações dentro da rede neural: "As atividades das células nervosas não refletem um meio ambiente independente do organismo vivo e, consequentemente, não levam em consideração a construção de um mundo exterior absolutamente existente".
De acordo com Maturana, a percepção e, mais geralmente, a cognição não representam uma realidade exterior, mas, em vez disso, especificam uma por meio do processo de organização circular do sistema nervoso. Com base nessa premissa, Maturana deu o passo radical de postular que o próprio processo de organização circular - com ou sem um sistema nervoso - é idêntico ao processo de cognição: "Sistemas vivos são sistemas cognitivos, e a vida como um processo é um processo de cognição. Essa afirmação vale para todos os organismos, com ou sem um sistema nervoso". (p. 88)

A organização de um sistema vivo, eles explicam, é o conjunto de relações entre os seus componentes que caracteriza o sistema como pertencendo a uma determinada classe (tal como uma bactéria, um girassol, um gato ou um cérebro humano). A descrição dessa organização é uma descrição abstrata de relações e não identifica os componentes. Os autores supões que a autopoiese é um padrão geral de organização comum a todos os sistemas vivos, qualquer que seja a natureza dos seus componentes. (p. 89)

Ao mesmo tempo, o químico especializado na química da atmosfera, James Lovelock, fez uma descoberta iluminadora que o levou a formular um modelo que é, talvez, a mais surpreendente e mais bela expressão da auto-organização - a ideia de que o planeta Terra como um todo é um sistema vivo, auto-organizador. (p. 90)

Eles descobriram que as composições químicas das duas atmosferas são notavelmente semelhantes. Embora haja muito pouco oxigênio, uma porção de dióxido de carbono (CO²) e nenhum metano na atmosfera de Marte, a atmosfera da Terra contém grande quantidade de oxigênio, quase nenhum CO² e uma porção de metano.
Lovelock compreendeu que a razão para esse perfil atmosférico particular em Marte é que, num planeta sem vida todas as reações químicas possíveis entre os gases na atmosfera foram completadas muito tempo atrás. Hoje, não há mais reações químicas possíveis em Marte; há um total equilíbrio químico na atmosfera marciana. (p. 91)

Será que a vida na Terra não somente criou a atmosfera, mas também a regula - mantendo-a com uma composição constante, e num nível favorável aos organismos? (p. 92)

Margulis lembra-se de que continuava perguntando: "Por que todos concordam com o fato de que o oxigênio atmosférico ... provém da vida, mas ninguém fala sobre os outros gases atmosféricos que provêm da vida?" Logo depois, vários colegas dela recomendaram que conversasse com James Lovelock, o que levou a uma longa e proveitosa colaboração, a qual resultou na hipótese de Gaia plenamente científica. (p. 93)

Nas palavras de Lynn Margulis: "Enunciada de maneira simples, a hipótese [de Gaia] afirma que a superfície da Terra, que sempre temos considerado o meio ambiente da vida, é na verdade parte da vida. A manta de ar - a troposfera - deveria ser considerada um sistema circulatório, produzido e sustentado pela vida. ... Quando os cientistas nos dizem que a vida se adapta a um meio ambiente essencialmente passivo de química, física e rochas, eles perpetuam uma visão seriamente distorcida. A vida, efetivamente, fabrica e modela e muda o meio ambiente ao qual se adapta. Em seguida, esse !meio ambiente" realimenta a vida que está mudando e atuando e crescendo nele. Há interações cíclicas constantes." (p. 94)

De fato, a imagem de Gaia como um ser sensível foi o principal argumento implícito para a rejeição da hipótese de Gaia depois de sua publicação. Os cientistas expressaram essa rejeição alegando que a hipótese era não-científica porque era teleológica - isto é, implicava a ideia de processos naturais sendo modelados por um propósito. "Nem Lynn Margulis nem eu jamais propusemos que a auto-regulação planetária é propositada", protesta Lovelock. "Não obstante, temos encontrado críticas persistentes, quase dogmáticas, afirmando que nossa hipótese é teleológica". (p. 95)

A teoria dos sistemas vivos que está emergindo nos dias atuais finalmente superou a discussão entre mecanicismo e teleologia. Como veremos, ela concebe a natureza viva como consciente (mindful) e inteligente sem a necessidade de supor qualquer plano ou propósito global. (p. 95)

Galileu herdou essa visão dos filósofos da antiga Grécia, que tendiam a geometrizar todos os problemas matemáticos e a procurar respostas em termos de figuras geométricas. Dizia-se que a Academia de Platão, em Atenas, a principal escola grega de ciência e de filosofia durante nove séculos, ostentava uma tabuleta acima de sua porta de entrada com os dizeres: "Não entre aqui se não estiver familiarizado com a geometria". (p. 100)

A exploração dos sistemas não-lineares ao longo das últimas décadas tem exercido um profundo impacto sobre a ciência como um todo, pois está nos obrigando a reavaliar algumas noções muito básicas sobre as relações entre um modelo matemático e os fenômenos que ele descreve. Uma dessas noções refere-se à nossa compreensão da simplicidade e da complexidade.
No mundo das equações lineares, nós pensávamos que sabíamos que sistemas descritos por equações simples se comportavam de maneira simples, ao passo que aqueles descritos por equações complicadas se comportavam de maneiras complicadas. No mundo não-linear - que inclui a maior parte do mundo real, como começamos a descobrir - equações deterministas simples podem produzir uma riqueza e uma variedade de comportamentos insuspeitadas. Por outro lado, comportamentos complexos e aparentemente caóticos podem dar origem a estruturas ordenadas, a padrões belos e sutis. De fato, na teoria do caos, o termo "caos" adquiriu um novo significado técnico. O comportamento de sistemas caóticos não é meramente aleatório, mas exibe um nível mais profundo de ordem padronizada. Como veremos adiante, as novas técnicas matemáticas nos permitem tornar esses padrões subjacentes visíveis sob formas distintas. (p. 107)

Em sistemas não-lineares, ao contrário, pequenas mudanças podem ter efeitos dramáticos, pois podem ser amplificadas repetidamente por meio de realimentação de auto-reforço. Esses processos de realimentação não-lineares constituem a base das instabilidades e da súbita emergência de novas formas de ordem, tão típicas da auto-organização. (p. 107)

Até mesmo os computadores mais poderosos arredondam os seus cálculos após um certo número de casas decimais, e, depois de um certo número de iterações, até mesmo os mais diminutos erros arredondados terão se acumulado a ponto de produzirem uma incerteza suficiente para tornar impossível as previsões. A transformação do padeiro é um protótipo dos processos não-lineares, altamente complexos e imprevisíveis, conhecidos tecnicamente como caos. (p 109)

Assim, a nova matemática representa uma mudança da quantidade para a qualidade, o que é característico do pensamento sistêmico em geral. Enquanto a matemática convencional lida com quantidades e com fórmulas, a teoria dos sistemas dinâmicos lida com qualidades e com padrões. (p. 116)

Como nos lembra Mandelbrot: "A maior parte da natureza é muito, muito complicada. Como se poderia descrever uma nuvem? Uma nuvem não é uma esfera. ... É como uma bola, porém muito irregular. Uma montanha? Uma montanha não é um cone. ... Se você quer falar de nuvens, de montanhas, de rios, de relâmpagos, a linguagem geométrica aprendida na escola é inadequada". (p. 118)

A propriedade mais notável dessas formas "fractais" é que seus padrões característicos são repetidamente encontrados em escala descendente, de modo que suas partes, em qualquer escala, são, na forma, semelhantes ao todo. Mandelbrot ilustra essa propriedade da "auto-similaridade" arrancando um pedaço de uma couve-flor e indicando que, por si mesmo, esse pedaço se parece exatamente com uma pequena couve-flor. (p. 118)

Descartes chamava de "imaginária" a raiz quadrada de um número negativo, e acreditava que a ocorrência desses números "imaginários" em um cálculo significava que o problema não tinha solução. Outros matemáticos utilizavam termos tais como "fictícias", "sofisticadas" ou "impossíveis" para rotular essas quantidades que hoje, seguindo Descartes, ainda chamamos de "números imaginários". (p. 122)

O grande Leibniz, inventot do cálculo diferencial, atribuía uma qualidade mística à raiz quadrada de -1, vendo-a como uma manifestação do "Espírito Divino" e chamando-a de "aquele anfíbio entre o ser e o não-ser". (p. 122)

Para cada constante e será obtido um conjunto diferente; portanto, há um número infinito desses conjuntos. Alguns deles são peças (ou pedaços) isoladas ou conexas; outros estão quebrados em várias peças desconexas; outras ainda parecem ter explodido em poeira. Todos têm a aparência dentada característica das fractais, e é impossível descrever a maior parte deles na linguagem da geometria clássica. "Você consegue uma variedade incrível de conjuntos de Julia", maravilha-se o matemático francês Adrien Douady. "Alguns são nuvens gordas, outros são macilentos arbustos cheios de espinhos, alguns se parecem com faíscas que flutuam no ar depois que um fogo de artifício se desfez. Um tem a forma de um coelho, muitos deles têm caudas de cavalo-marinho". (p. 125)

Para descobrir se um determinado conjunto de Julia é conexo ou desconexo, tudo o que se tem a fazer é iterar o ponto de partida z=0. Se esse ponto permanecer finito sob iterações repetidas, o conjunto de Julia é sempre conexo, por mais enrugado que possa ser; se não permanecer finito ele é sempre desconexo. (p. 125)

Em cada escala dessa viagem fantástica - para a qual a potência dos computadores atuais pode produzir ampliações de até cem milhões de vezes! - a figura assemelha-se a um litoral ricamente fragmentado, mas delineia formas que parecem orgânicas em sua complexidade sem fim. E, de vez em quando, fazemos uma descoberta estranha e misteriosa - uma réplica minúscula de todo o conjunto de Mandelbrot enterrada nas profundezas da estrutura do seu contorno. (p. 127)

O termo psicodélico ("que manifesta a mente") foi inventado porque pesquisas detalhadas demonstraram que essas drogas atuam como amplificadores, ou como catalisadores, de processos mentais inerentes. Pareceria, portanto, que os padrões fractais que constituem uma característica tão notável da experiência com o LSD devem, de alguma maneira, estar incorporados no cérebro humano. O fato de a geometria fractal e o LSD surgirem em cena aproximadamente na mesma época é uma dessas notáveis coincidências - ou seriam sincronicidades? - que têm ocorrido com tanta frequência na história das ideias. (p. 128)

Porém essa estrutura cuja riqueza desafia a imaginação humana é gerada por algumas regras muito simples. Por isso, a geometria fractal, assim como a teoria do caos, forçou os cientistas e os matemáticos a reexaminar a própria concepção de complexidade. (p. 128)

O teórico do caos Ralph Abraham se lembra: "Quando comecei meu trabalho profissional em matemática, em 1960, o que não faz muito tempo, a matemática moderna, na sua totalidade - na sua totalidade -, foi rejeitada pelos físicos, inclusive pelos teóricos mais vanguardistas. ... Tudo o que estivesse apenas um ano ou dois além do que Einstein utilizara era totalmente rejeitado. ... Os físicos matemáticos recusavam aos seus alunos de graduação permissão para seguir cursos de matemática ministrados por matemáticos: 'Façam matemática conosco. Nós lhes ensinaremos tudo o que vocês precisam saber. ...' Isto foi em 1960. Por volta de 1968, a situação se inverteu totalmente". (p. 129)

Podemos agora voltar à questão central deste livro: "O que é a vida?" Minha tese é a de que uma teoria dos sistemas vivos consistente com o arcabouço filosófico da ecologia profunda, incluindo uma linguagem matemática apropriada e implicando uma compreensão não-mecanicista e pós-cartesiana da vida, está emergindo nos dias de hoje. (p. 133)

Vim a acreditar que a chave para uma teoria abrangente dos sistemas vivos reside na síntese dessas duas abordagens - o estudo do padrão (ou forma, ordem, qualidade) e o estudo da estrutura (ou substância, matéria, quantidade). (p. 133)

O padrão de organização de qualquer sistema, vivo ou não-vivo, é a configuração de relações entre os componentes do sistema que determinam as características essenciais desse sistema. (p. 134)

Em resumo, proponho entender a autopoiese, tal como é definida por Maturana e Varela, como o padrão da vida (isto é, o padrão de organização dos sistemas vivos); a estrutura dissipativa, tal como é definida por Prigogine, como a estrutura dos sistemas vivos; e a cognição, tal como foi definida inicialmente por Gregory Bateson e mais plenamente por Maturana e Varela, como o processo da vida. (p. 135)

O padrão de organização determina as características essenciais de um sistema. Em particular, determina se o sistema é vivo ou não-vivo. A autopoiese - o padrão de organização dos sistemas vivos - é, pois, a característica que define a vida na nova teoria. Para descobrir se um determinado sistema - um cristal, um vírus, uma célula ou o planeta Terra - é vivo, tudo o que precisamos fazer é descobrir se o seu padrão de organização é o de uma rede autopoiética. Se for, estamos lidando com um sistema vivo; se não for, o sistema é não-vivo. (p. 135)

Na nova teoria, todos os sistemas vivos são sistemas cognitivos, e a cognição sempre implica a existência de uma rede autopoiética. (p. 136)

Então, a autopoiese é vista como o padrão subjacente ao fenômeno da auto-organização, ou autonomia, que é tão característico de todos os sistemas vivos. (p. 140)

Além disso, a contínua autocriação também inclui a capacidade de formar novas estruturas e novos padrões de comportamento. (p. 141)

Um ponto sutil mas importante na definição de autopoiese é o fato de que uma rede autopoiética não é um conjunto de relações entre componentes estáticos (como, por exemplo, o padrão de organização de um cristal), mas, sim, um conjunto de relações entre também pára. Em outras palavras, redes autopoiéticas devem, continuamente, regenerar a si mesmas para manter sua organização. Esta, naturalmente, é uma característica bem-conhecida da vida. (p. 141)

A propriedade fundamental desses ciclos é a sua capacidade para atuar como laços de realimentação não somente de auto-equilibração, mas também de auto-amplificação, os quais podem afastar o sistema, cada vez mais, para longe do equilíbrio, até que seja alcançado um limiar de estabilidade. Esse limiar é denominado "ponto de bifurcação". Trata-se de um ponto de instabilidade, do qual novas formas de ordem podem emergir espontaneamente, resultando em desenvolvimento e em evolução. (p. 143)

De acordo com a teoria dos sistemas vivos, a mente não é uma coisa mas sim um processo - o próprio processo da vida. Em outras palavras, a atividade organizadora dos sistemas vivos, em todos os níveis da vida, é a atividade mental. As interações de um organismo vivo - planta, animal ou ser humano - com seu meio ambiente são interações cognitivas, ou mentais. Desse modo, a vida e a cognição se tornam inseparavelmente ligadas. A mente - ou, de maneira mais precisa, o processo mental - é imanente na matéria em todos os níveis da vida. (p. 144)

Bateson discriminou um conjunto de critérios aos quais os sistemas precisam satisfazer para que a mente ocorra. Qualquer sistema que satisfaça esses critérios será capaz de desenvolver os processos que associamos com a mente - aprendizagem, memória, tomada de decisões, e assim por diante. Na visão de Bateson, esses processos mentais são uma consequência necessária e inevitável de uma certa complexidade que começa muito antes de os organismos desenvolverem cérebros e sistemas nervosos superiores. Ele também enfatizou o fato de que a mente se manifesta não apenas em organismos individuais, mas também em sistemas sociais e em ecossistemas. (p. 144)

Era claro para ele que o fenômeno da mente estava inseparavelmente ligado com o fenômeno da vida. Quando olhava para o mundo vivo, reconhecia sua atividade organizadora como sendo, essencialmente, uma atividade mental. Em suas próprias palavras, "a mente é a essência do estar vivo". (p. 145)

Por coincidência - ou seria talvez por intuição? - Maturana se debateu, simultaneamente, com duas questões que, para ele, pareciam levar a sentidos opostos: "Qual é a natureza da vida?" e "O que é cognição?" Finalmente, ele acabou descobrindo que a resposta à primeira questão - a autopoiese - lhe fornecia o arcabouço teórico para responder à segunda. O resultado é um teoria sistêmica da cognição, desenvolvida por Maturana e Varela, que às vezes é chamada de teoria de Santiago. (p. 145)

De acordo com a teoria de Santiago, o cérebro não é necessário para que a mente exista. Uma bactéria, ou uma planta, não tem cérebro mas tem mente. Os organismos mais simples são capazes de percepção, e portanto de cognição. Eles não Vêem, mas não obstante, percebem mudanças em seu meio ambiente - diferenças entre luz e sombra, entre quente e frio, concentrações mais altas e mais baixas de alguma substância química, e coisas semelhantes.
A nova concepção de cognição, o processo de conhecer, é, pois, muito mais ampla que a concepção do pensar. Ela envolve percepção, emoção e ação - todo o processo da vida. No domínio humano, a cognição também inclui a linguagem, o pensamento conceitual e todos os outros atributos da consciência humana. (p. 145)

Até mesmo recentemente, em 1994, os editores de uma antologia intitulada Consciousness in Philisophy and Cognitive Neuroscience afirmaram sinceramente em sua introdução: "Mesmo que todos concordem com o fato de que a mente tem algo a ver com o cérebro, ainda não existe um acordo geral quanto à natureza exata da relação entre ambos".
Na Na teoria de Santiago, a relação entre mente e cérebro é simples e clara. A caracterização, feita por Descartes, da mente como sendo "a coisa pensante" (res cogitans) finalmente é abandonada. A mente não é uma coisa, mas um processo - o processo de cognição, que é identificado com o processo da vida. O cérebro é uma estrutura específica por meio da qual esse processo opera. Portanto, a relação entre mente e cérebro é uma relação entre processo e estrutura.
O cérebro não é, naturalmente, a única estrutura por meio da qual o processo de cognição opera. Toda a estrutura dissipativa do organismo participa do processo da cognição, quer o organismo tenha ou não um cérebro e um sistema nervoso superior. Além disso, pesquisas recentes indicam fortemente que, no organismo humano, o sistema nervoso, o sistema imunológico e o sistema endócrino, os quais, tradicionalmente, têm sido concebidos como três sistemas separados, formam na verdade uma única rede cognitiva. (p. 146)

A Figura 8-1 mostra uma representação de uma cadeia (ou ciclo) alimentar típica. À medida que as plantas são comidas por animais, que por sua vez são comidos por outros animais, os nutrientes das plantas passam pela teia alimentar, enquanto a energia é dissipada como calor por meio da respiração e como resíduos por meio da excreção. Os resíduos, bem como os animais e as plantas mortas, são decompostos pelos assim chamados organismos decompositores (insetos e bactérias), que os quebram em nutrientes básicos, para serem mais uma vez assimilados pelas plantas verdes. Dessa maneira, nutrientes e outros elementos básicos circulam continuamente através do ecossistema, embora a energia seja dissipada em cada estágio. Daí a máxima de Eugene Odum: "A matéria circula, a energia se dissipa". O único resíduo gerado pelo ecossistema como um todo é a energia térmica da respiração, que é irradiada pela atmosfera e reabastecida continuamente pelo Sol graças à fotossíntese. (p. 148)

Um organismo vivo é caracterizado por um fluxo de uma mudança contínuos no seu metabolismo, envolvendo milhares de reações químicas. O equilíbrio químico e térmico ocorre quando todos esses processos param. Em outras palavras, um organismo em equilíbrio é um organismo morto. Organismos vivos se mantêm continuamente num estado afastado do equilíbrio, que é o estado da vida. Embora muito diferente do equilíbrio, esse estado é, não obstante, estável ao longo de extensos períodos de tempo., e isso significa que, como acontece num redemoinho de água, a mesma estrutura global é mantida a despeito do fluxo em andamento e da mudança dos componentes. (p. 150)

Na nova ciência da complexidade, que tira sua inspiração da teia da vida, aprendemos que o não-equilíbrio é uma fonte de ordem. (p. 156)

Em vez de ser uma máquina, a natureza como um todo se revela, em última análise, mais parecida com a natureza humana - imprevisível, sensível ao mundo circunvizinho, influenciada por pequenas flutuações. Consequentemente, a maneira apropriada de nos aproximarmos da natureza para aprender acerca da sua complexidade e da sua beleza não é por meio da dominação e do controle, mas sim, por meio do respeito, da cooperação e do diálogo. (p. 158)

Os atratores periódicos, cada um deles embutido em sua própria bacia de atração, constituem as mais importantes características das redes binárias. Extensas pesquisa têm mostrado que uma ampla variedade de sistemas vivos - inclusive redes genéticas, sistemas imunológicos, redes neurais, sistemas de órgãos e ecossistemas - podem ser representados por redes binárias que exibem vários atratores alternativos. (p. 165)

Desse modo, redes binárias complexas exibem três amplos regimes de comportamento: um regime ordenado com componentes congelados, um regime caótico sem componentes congelados e uma região fronteiriça entre ordem e caos, onde componentes congelados apenas começam a se "liquefazer". A hipótese central de Kauffman é a de que os sistema vivos existem nessa região limítrofe perto da "margem do caos". Ele afirma que, nas profundezas do regime ordenado, as ilhas de atividade seriam pequenas demais para que o comportamento complexo se propagasse através do sistema. Por outro lado, nas profundezas do regime caótico, o sistema seria demasiadamente sensível a pequenas perturbações para conseguir manter sua organização. Desse modo, na visão de Kauffman, a seleção natural pode favorecer e sustentar os sistemas vivos na "margem do caos", pois esses sistemas podem ter maior capacidade para coordenar um comportamento complexo e flexível, maior capacidade para se adaptar e evoluir. (p. 166)

O conjunto completo de genes de um organismo, o assim chamado genoma, forma uma imensa rede interconectada, rica em laços de realimentação, na qual os genes, direta ou indiretamente, regulam as atividades uns dos outros. (p. 166)

Depois desse primeiro exemplo de química autopoiética, os pesquisadores na ETH foram bem-sucedidos em criar outro tipo de estrutura química, que é ainda mais relevante para os processos celulares, pois, conforme se pensa, seus principais ingredientes - os assim chamados ácidos graxos - constituem o material para as paredes celulares primordiais. Os experimentos consistem em produzir gotículas de água esféricas circundadas por conchas dessas substâncias graxas, que têm a estrutura semipermeável típica das membranas biológicas (mas sem os seus componentes de proteínas) e geram laços catalíticos que resultam num sistema autopoiético. (p. 170)

Desse modo, nas palavras de Maturana e Varela: "O organismo restringe a criatividade individual de suas unidades componentes, visto que essas unidades existem para esse organismo. O sistema social humano amplifica a criatividade individual de seus componentes, pois esse sistemas existe para esses componentes".
Organismos e sociedades humanas são, portanto, tipos muito diferentes de sistemas vivos. Regimes políticos totalitários têm, com frequência, restringindo gravemente a autonomia de seus membros e, ao fazê-lo, despersonalizou-os e desumanizou-os. Desse modo, as sociedades fascistas funcionam mais como organismos, e não é uma coincidência o fato de as ditaduras, muitas vezes, gostarem de usar a metáfora da sociedade como um organismo vivo. (p. 171)

O ponto central de Luhmann consiste em identificar os processos sociais da rede autopoiética como processos de comunicação: "Os sistemas sociais usam a comunicação como seu modo particular de reprodução autopoiética. Seus elementos são comunicações que são ... produzidas e reproduzidas por uma rede de comunicações e que não podem existir fora dessa rede". (p. 172)

O sistema planetário opera numa escala muito grande no espaço e também envolve longas escalas de tempo. Desse modo, não é tão fácil pensar em Gaia como sendo viva de uma maneira concreta. O planeta todo é vivo ou apenas certas partes dele são vivas? E, nesse último caso, que partes? Para nos ajudar a conceber Gaia como um sistema vivo, Lovelock sugeriu a analogia com uma árvore. Numa árvore crescida, há somente uma fina camada de células vivas ao redor do seu perímetro, logo abaixo da casca. Toda a madeira interna, mais de 97 por cento da árvore, está morta. De maneira semelhante, a Terra está coberta por uma fina camada de organismos vivos - a biosfera - que se aprofunda no oceano por cerca de 8 quilômetros até pouco mais de 9,5 quilômetros, e se ergue na atmosfera numa distância equivalente. Portanto, a parte viva de Gaia é apenas uma delgada película ao redor do globo. Se o planeta for representado por uma esfera do tamanho de uma bola de basquete, com os oceanos e os países pintados em sua superfície, a espessura da biosfera terá justamente a espessura aproximada dessa camada de tinta! (p. 173)

O sistema de Gaia é também claramente autogerador. O metabolismo planetário converte substâncias inorgânicas em matéria orgânica viva, e novamente em solos, oceanos e ar. Todos os componentes da rede de Gaia, incluindo aqueles de sua fronteira atmosférica, são produzidos por processos internos à rede. (p. 174)

Até mesmo hoje os organismos vivos visíveis funcionam somente devido às suas conexões bem-desenvolvidas com a teia bacteriana da vida. "Longe de deixar os microorganismos para trás numa 'escada' evolutiva", escreve Margulis, "somos tanto rodeados como compostos por eles. ... [Temos de] pensar a respeito de nós mesmos e do nosso meio ambiente como um mosaico evolutivo de vida microcósmica". (p. 174)

Muitas dessas mudanças cíclicas ocorrem muito mais depressa do que se poderia imaginar. Por exemplo, nosso pâncreas repõe a maior parte de suas células a cada vinte e quatro horas, as células que revestem o nosso estômago são reproduzidas a cada três dias, os glóbulos brancos do nosso sangue são renovados em dez dias, e 98 por cento das proteínas de nosso cérebro dão uma rodada completa em menos de um mês. Ainda mais surpreendente é o fato de que nossa pele substitui suas células a uma taxa de cem mil células por minuto. De fato, a maior parte da poeira de nossas casas consiste em células mortas da nossa pele. (p. 176)

Agora, uma vez que a estrutura de um organismo, em qualquer ponto de seu desenvolvimento, é um registro de suas mudanças estruturais anteriores, e uma vez que cada mudança estrutural influencia o comportamento futuro do organismo, isso implica que o comportamento do organismo vivo é determinado pela sua estrutura. Desse modo, um sistema vivo é determinado de diferentes maneiras pelo seu padrão de organização e pela sua estrutura. O padrão de organização determina a identidade do sistema (suas características essenciais); a estrutura, formada por uma sequência de mudanças estruturais, determina o comportamento do sistema. Na terminologia de Maturana, o comportamento dos sistemas vivos é "determinado pela estrutura" (structure-determined). (p. 177)

Darwin baseou sua teoria em duas ideias fundamentais - variação casual, que seria posteriormente denominada mutação aleatória, e seleção natural. No centro do pensamento darwinista está a introvisão segundo a qual todos os organismos vivos são apresentados com ancestrais comuns. Todas as formas de vida emergiram desses ancestrais por meio de um processo contínuo de variações ao longo de todos os bilhões de anos de história geológica. Nesse processo evolutivo, são produzidas muito mais variações do que as que podem sobreviver, e, dessa maneira, muitos indivíduos são eliminados por seleção natural, conforme algumas variantes apresentam crescimento excessivo e sufocam a produção de outras. (p. 180)

A combinação da ideia de Darwin de mudanças evolutivas graduais com a descoberta de Mendel da estabilidade genética resultou na síntese conhecida como neodarwinismo, que é hoje ensinada, como a teoria da evolução estabelecida, nos departamentos de biologia em todo o mundo. De acordo com a teoria neodarwiniana, toda variação evolutiva resulta de mutação aleatória - isto é, de mudanças genéticas aleatórias - seguida por seleção natural. Por exemplo, se uma espécie animal precisa de uma pele espessa para sobreviver num clima frio, ela não responderá a essa necessidade fazendo com que ocorra o crescimento do pelo, mas, em vez disso, desenvolverá todo o tipo de mudanças genéticas aleatórias, e os animais cujas mudanças resultem em pele espessa sobreviverão para produzir mais prole. Desse modo, nas palavras do geneticista Jacques Monod: "Apenas o acaso está na fonte de toda inovação, de toda criação na biosfera". (p. 180)

O problema conceitual de importância central do neodarwinismo é, pelo que parece, sua concepção reducionista do genoma, a coleção dos genes de um organismo. As grandes realizações da biologia molecular, com frequência descritas como "a quebra do código genético", resultaram na tendência para representar o genoma como um arranjo linear de genes independentes, cada um deles correspondendo a uma característica biológica.
No entanto, pesquisas têm mostrado que um único gene pode afetar um amplo espectro de características, e que, inversamente, muitos genes separados comunicam-se com frequência para produzir uma única característica. Portanto, é muito misterioso o processo pelo qual estruturas complexas, como um olho ou uma flor, poderiam ter evoluído por meio de mutações sucessivas de genes individuais. Evidentemente, o estudo das atividades coordenadoras e integradoras de todo o genoma é de importância suprema, mas esta tem sido seriamente dificultada pela perspectiva mecanicista da biologia convencional. Apenas muto recentemente os biólogos começaram a entender o genoma de um organismo como uma rede intensamente entrelaçada e a estudar suas atividades a partir de uma perspectiva sistêmica. (p. 181)

O registro fóssil mostra claramente que, ao longo de toda a história da evolução, tem havido extensos períodos de estabilidade, ou "estase", sem nenhuma variação genética, pontuados por súbitas e dramáticas transições. Períodos estáveis de centenas de milhares de anos são a norma. (p. 181)

Um aspecto importante da teoria clássica da evolução é a ideia de que, no decurso da mudança evolutiva e sob a pressão da seleção natural, os organismos, gradualmente, se adaptam ao seu meio até atingir um ajuste que seja com o bastante para a sobrevivência e a reprodução. Na nova visão sistêmica, ao contrário, a mudança evolutiva é vista como o resultado da tendência inerente da vida para criar novidade, a qual pode ou não ser acompanhada de adaptação às condições ambientais em mudança. (p. 182)

"Devemos repensar a biologia evolutiva", escreve Stuart Kauffman. "Grande parte da ordem que vemos nos organismos pode ser o resultado direto não da seleção natural, mas da ordem natural sobre a qual a seleção foi privilegiada para atuar. ... A evolução não é um mero remendo. ... É ordem emergente honrada e afiada pela seleção". (p. 182)

A teoria de Prigogine das estruturas dissipativas mostra como sistemas bioquímicos complexos, operando afastados do equilíbrio, geram laços catalíticos que levam a instabilidades e podem produzir novas estruturas de ordem superior. Manfred Eigen sugeriu que ciclos catalíticos semelhantes podem ter se formado antes da emergência da vida na Terra, iniciando assim uma fase pré-biológica da evolução. Stuart Kauffman utilizou redes binárias como modelos matemáticos das redes genéticas de organismos vivos, e foi capaz de deduzir, com base nesses modelos, várias características conhecidas de diferenciação e de evolução celular. Humberto Maturana e Francisco Varela descreveram o processo da evolução em termos de sua teoria da autopoiese, vendo a história da evolução de uma espécie como a história do seu acoplamento estrutural. E James Lovelock e Lynn Margulis, em sua teoria de Gaia, exploram as dimensões planetárias do desdobramento da vida.
A teoria de Gaia, assim como o trabalho anterior de Lynn Margulis em microbiologia, expuseram o erro da estreita concepção darwiniana de adaptação. Ao longo de todo o mundo vivo, a evolução não pode ser limitada à adaptação de organismos ao seu meio ambiente, pois o próprio meio ambiente é modelado por uma rede de sistemas vivos capazes de adaptação e de criatividade. Portanto, o que se adapta ao quê? Cada qual se adapta aos outros - eles co-evoluem. Nas palavras de James Lovelock: "A evolução dos organismos vivos está estreitamente acoplada com a evolução do seu meio ambiente que, juntas, elas constituem um único processo evolutivo". (p. 182)

Durante esses dois bilhões de anos, as bactérias transformaram continuamente a superfície da Terra e a sua atmosfera, e, ao fazê-lo, inventaram todas as biotecnologias essenciais da vida, inclusive a fermentação, a fotossíntese, a fixação do nitrogênio, a respiração e os dispositivos motores para movimento rápido.
Nas três últimas décadas, extensas pesquisas em microbiologia têm revelado três dos principais caminhos da evolução. O primeiro, porém menos importante, é a mutação aleatória dos genes, a peça central da teoria neodarwiniana. A mutação dos genes é causada por um erro casual na auto-replicação do ADN, quando as duas cadeias da dupla hélice do ADN se separam, e cada uma delas serve como molde, ou gabarito, para a construção de uma cadeia complementar. (p. 183)

A velocidade com que a resistência às drogas se espalha entre as comunidades de bactérias é uma prova dramática de que a eficiência de sua rede de comunicações é imensamente superior à da adaptação por meio de mutações. (p. 184)

O constante intercâmbio de genes entre as bactérias resulta numa espantosa variedade de estruturas genéticas além do seu cordão principal de ADN. Essas incluem a formação de vírus, que não são sistemas autopoiéticos completos, mas consistem apenas num pedaço de ADN ou de ARN sob um revestimento de proteína. (p. 184)

"Uma bactéria não é um organismo unicelular", escreve Sonea; "é uma célula incompleta ... pertencente a diferentes quimeras de acordo com as circunstâncias". Em outras palavras, todas as bactérias são parte de uma única teia microcósmica de vida. (p. 184)

Em seus estudos de genética, Margulis ficou intrigada com o fato de que nem todos os genes numa célula nucleada se encontram dentro do núcleo celular. "Fomos todos ensinados que os genes se encontravam no núcleo e que o núcleo é o controle central da célula. No começo dos meus estudos de genética, tronei-me ciente de que existe outros sistemas genéticos, com diferentes padrões de herança. Desde o princípio, fiquei curiosa a respeito desses genes indisciplinados que não estavam nos núcleos". (p. 184)

A evidência mais notável para a evolução por meio de simbiose é apresentada pelas assim chamadas mitocôndrias, as "casas de força" dentro da maioria das células nucleadas. Essas partes vitais das células animais e vegetais, que realizam a respiração celular, contêm seus próprios materiais genéticos e se reproduzem de maneira independente e em tempos diferentes, com relação ao restante da célula. Margulis especula que as mitocôndrias foram, originalmente, bactérias que flutuariam livremente e que, em antigos tempos, teriam invadido outros microorganismos e estabelecido resistência permanente dentro deles. "Os organismos mesclados iriam se desenvolver em formas de vida mais complexas, que respiram oxigênio", explica Margulis. "Aqui, portanto, havia um mecanismo evolutivo mais inesperado do que a mutação: uma aliança simbiótica que se tornou permanente". (p. 185)

Margulis especula que muitos diferentes tipos de sistemas químicos replicantes encerrados por membranas podem ter surgido, podem ter evoluído por um momento e então desaparecido novamente antes que as primeiras células emergissem: "Muitas estruturas dissipativas, longas cadeias de diferentes reações químicas, devem ter evoluído, reagido e desmoronado antes que a elegante hélice dupla do nosso ancestral básico passasse a ser e a replicar com alta fidelidade". Nesse momento, há cerca de 3,5 bilhões de anos, nasceram as primeiras células bacterianas autopoiéticas, e a evolução da vida começou. (p. 188)

Tendemos a associar bactérias com doenças, mas elas também são vitais para a nossa sobrevivência, como também o são para a sobrevivência de todos os animais e plantas. "Sob nossas diferenças superficiais, somos todos comunidades ambulantes de bactérias", escrevem Margulis e Sagan. "O mundo brilha com uma luz trêmula, uma paisagem pontilhista feita de minúsculos seres vivos". (p. 191)

Muitos dispositivos protetores e estratégias adaptativas se desenvolveram, e finalmente a crise do oxigênio levou a uma das maiores e mais bem-sucedidas inovações de toda a história da vida: "Em um dos maiores estratagemas de todos os tempos, as bactérias [azuis-verdes] inventaram um sistema metabólico que exigia a própria substância que tinha sido um veneno mortal. ... A respiração de oxigênio é uma maneira engenhosamente eficiente de canalisar e de explorar a realidade do oxigênio. É essencialmente a combustão controlada que quebra as moléculas orgânicas e produz dióxido de carbono, água e, na barganha, uma grande quantidade de energia. ... O microcosmo fez mais do que se adaptar: ele desenvolveu um dínamo que utiliza o oxigênio e que mudou para sempre a vida e a morada terrestre da vida. (p. 192)

Embora suas novas relações simbióticas dessem às células nucleadas acesso ao uso eficiente da luz do Sol e do oxigênio, deram-lhes também uma grande vantagem evolutiva - a capacidade de movimento. Enquanto os componentes de uma célula bacteriana flutuam lenta e passivamente no fluido celular, os de uma célula nucleada parecem mover-se decididamente; o fluido celular se estende, e a célula toda pode se expandir e se contrair de maneira rítmica ou se mover rapidamente como um todo, como, por exemplo, no caso das células do sangue. (p. 194)

As descrições desses seres híbridos são, com frequência, assustadoras, mas muitos deles, curiosamente, são vistos como portadores de boa sorte. Por exemplo, o deus Ganesha, que tem corpo humano e cabeça de elefante, é uma das entidades mais reverenciadas na Índia, adorado como um símbolo de boa sorte e que ajuda a superar obstáculos. De alguma maneira, o inconsciente coletivo humano parece ter sabido desde os antigos tempos que simbioses de longo prazo são profundamente benéficas para toda a vida. (p. 194)

Um aspecto importante da especialização celular é a invenção da reprodução sexual, que ocorreu cerca de um bilhão de anos atrás. Tendemos a pensar que o sexo e a reprodução estão estreitamente associados, mas Margulis assinala que a complexa dança da reprodução sexual consiste em vários componentes distintos que evoluíram independentemente e só a pouco se tornaram interligados e unificados. (p. 195)

A fusão de material genético proveniente de duas células diferentes está difundida entre as bactérias, onde ocorre como um contínuo intercâmbio de genes que não está ligado à reprodução. Nas plantas e nos animais primitivos, a reprodução e a fusão de genes se ligaram e, subsequentemente, evoluíram em processos elaborados e em rituais de fertilização. (p. 195)

À medida que a especialização das células prosseguiu em formas de vida maiores e mais complexas, a capacidade de auto-restauração e de regeneração diminuiu progressivamente. Os platelmintos, os pólipos e as estrelas-do-mar podem regenerar quase todo o seu corpo a partir de pequenas frações; lagartos, salamandras, caranguejos, lagostas e muitos insetos ainda são capazes de fazer voltar a crescer órgãos ou membros perdidos; porém, nos animais superiores, a regeneração está limitada à renovação de tecidos na cura de lesões. Como consequência dessa perda de capacidade de regeneração, todos os organismos grandes envelhecem e finalmente morrem. No entanto, com a reprodução sexual, a vida inventou um novo tipo de processo de regeneração, no qual organismos inteiros são formados de novo repetidas vezes, retornando, em cada "geração", a uma única célula nucleada. (p. 195)

Um exemplo espetacular dessas agregações é o mixomiceto, um organismo macroscópico mas que, tecnicamente, é um protista. O mixomiceto tem um ciclo de vida complexo envolvendo uma fase móvel (zoomórfica) e uma imóvel (fitomórfica). Na fase zoomórfica, ele começa como uma multidão de células isoladas, comumente encontradas em florestas sob troncos apodrecidos e folhas úmidas, onde de alimentam de outros microorganismos e de vegetais em decomposição. As células, com frequência, comem tanto e se dividem tão depressa que esgotam todo o suprimento alimentício de seu meio ambiente. Quando isso acontece, elas se agregam numa massa coesa de milhares de células que se assemelha a uma lesma e é capaz de se arrastar pelo chão da floresta em movimentos parecidos com os de uma ameba. Ao encontrar uma nova fonte de alimentos, o mixomiceto entra em sua fase fitomórfica, desenvolvendo um caule com um corpo de frutificação que se parece muito com um cogumelo. Finalmente, a cápsula do fruto explode, projetando milhares de esporos secos dos quais nascem novas células individuais, que se movem independentemente pelas imediações à procura de alimentos, iniciando um novo ciclo de vida. (p. 196)

Sua coordenação e seu controle mútuos foram grandemente aumentados pela criação, muito antiga, dos sistemas nervosos, e por volta de 620 milhões de anos atrás, ocorreu a evolução de minúsculos cérebros animais. (p. 196)

Como observam Margulis e Sagan: "As plantas, de fato, parecem muito competentes em seduzir a nós, animais, persuadindo-nos a fazer para elas uma das poucas coisas que podemos fazer e que elas não podem: mover-se". (P. 198)

A fim de facilitar a transição para essas vizinhanças totalmente diferentes, os animais inventaram um estratagema bastante engenhoso. Eles levaram consigo, para os seus filhos, o seu antigo ambiente. Até hoje, o útero animal simula a umidade, a flutuabilidade e a salinidade do velho meio ambiente marinho. Além disso, as concentrações salinas no sangue dos mamíferos e em outros de seus fluidos corporais são notavelmente semelhantes às dos oceanos. Saímos dos oceanos há mais de 400 milhões de anos, mas nunca deixamos completamente para trás a água do mar. Ainda a encontramos no nosso sangue, no nosso suor e nas nossas lágrimas. (p. 198)

Para esses processos metabólicos funcionarem, a quantidade de cálcio tem de ser mantida em níveis precisos, que são muito inferiores aos níveis de cálcio na água do mar. Portanto, os animais marinhos, desde o princípio, tinham de remover continuamente todo o excesso de cálcio. Os primeiros animais menores simplesmente excretavam seus resíduos de cálcio, às vezes amontoando-os em enormes recifes de coral. À medida que os animais maiores evoluíam, eles começaram a armazenar o cálcio em excesso ao seu redor e dentro deles, e esses depósitos finalmente se converteram em conchas e em esqueletos. (p. 199)

As primeiras criaturas vertebradas com espinhas dorsais e um escudo craniano para proteger o sistema nervoso evoluíram, provavelmente, por volta de 500 milhões de anos atrás. Entre elas estava uma linhagem de peixes pulmonados, com barbatanas espessas, maxilares e uma cabeça semelhante à dos sapos, que rastejava ao longo das praias e acabou evoluindo nos primeiros anfíbios. Estes - rãs, sapos, salamandras e outros anfíbios aparentados às salamandras - constituem o elo evolutivo entre animais aquáticos e terrestres. São os primeiros vertebrados terrestres, mas ainda hoje começam seu ciclo vital como girinos, que respiram na água. (p. 199)

Como os mamíferos fariam com seus úteros mais tarde, os répteis encapsularam o antigo ambiente marinho em grandes ovos, nos quais sua prole poderia se preparar plenamente para passar todo o seu ciclo de vida em terra. (p. 199)

Como os outros répteis, os dinossauros eram animais que punham ovos. Muitos construíam ninhos, e alguns até mesmo desenvolveram asas e, finalmente, por volta de 150 milhões de anos atrás, evoluíram em pássaros. (p. 201)

A explosão catastrófica gerou uma enorme nuvem de poeira, que bloqueou a luz do Sol durante um prolongado período e, drasticamente, mudou os padrões meteorológicos em todo o mundo, e por isso os enormes dinossauros não puderam sobreviver. (p. 201)

As fêmeas desses animais de sangue quente não encerravam mais seus embriões em ovos mas, em vez disso, os nutriam dentro de seus próprios corpos. Depois de nascerem, os bebês ficavam relativamente desamparados e eram alimentados por suas mães. Devido a esse comportamento característico, que inclui a nutrição com leite secretado pelas glândulas mamárias, essa classe de animais é conhecida como "mamífero". Por volta de 50 milhões de anos mais tarde, outra linhagem recém-evoluída de vertebrados de sangue quente, os pássaros, começou igualmente a alimentar e a ensinar sua prole vulnerável. (p. 201)

Diferentemente de outros animais, os prossímios não eram anatomicamente especializados e, portanto, sempre foram ameaçados por inimigos. No entanto, compensaram sua falta de especialização desenvolvendo maior destreza e inteligência. Seu medo de inimigos, constantemente fugindo e se escondendo, e sua vida noturna ativa encorajaram a cooperação e levaram ao comportamento social que é característico de todos os primatas superiores. Além disso, o hábito de se proteger fazendo barulhos frequentes em voz alta evoluiu gradualmente para a comunicação vocal. (p. 202)

Ansiosamente atentos à presença de inimigos por sobre as altas gramíneas, assumiram uma postura ereta por breves momentos antes de retornar a uma posição agachada, assim como os babuínos ainda o fazem. Essa capacidade para permanecer eretos, mesmo por breves momentos, representou uma forte vantagem seletiva, pois permitiu aos primatas usar as mãos para coletar alimentos, brandir varas e atirar pedras a fim de se defender. Gradualmente, seus pés se tornaram mais achatados, sua destreza manual aumentou, e o uso de ferramentas e de armas primitivas estimulou o crescimento do cérebro; e, desse modo, alguns dos prossímios evoluíram em macacos, chimpanzés e gorilas. (p. 202)

Os cérebros dos grandes símios antropóides são muito mais complexos que os dos macacos e, desse modo, sua inteligência é muito superior. A capacidade de usar e, até um certo ponto, até mesmo de fazer ferramentas é característica dos grandes símios antropóides.
Por volta de 4 milhões de anos atrás, uma espécie de chimpanzé do trópico africano evoluiu num símio antropóide que caminhava ereto. Essa espécie de primata, que se extinguiu um milhão de anos mais tarde, era muito semelhante aos outros grandes símios antropóides, mas, devido ao porte ereto, foi classificado como "hominídeo", o que, de acordo com Lynn Margulis, é injustificado em termos puramente biológicos. (p. 203)

À medida que aprendemos como os répteis evoluíram em vertebrados de sangue quente, que cuidavam de seus filhos, como os primeiros primatas desenvolveram unhas achatadas, polegares opostos aos outros dedos e o começo de uma comunicação vocal, e como os símios antropóides desenvolveram caixas torácicas e braços semelhantes aos humanos, cérebros complexos e capacidade de fazer ferramentas, podemos rastrear a emergência gradual de nossas características humanas. E quando atingimos o estágio dos símios antropóides de caminhar ereto com as mãos livres, sentimos que agora a aventura da evolução humana começa efetivamente. Para segui-la de perto, temos de mudar mais uma vez nossa escala de tempo, dessa vez de milhões para milhares de anos. (p. 203)

A mais antiga espécie desses símios meridionais é conhecida como Australopithecus afarensis, nome dado em homenagem às descobertas de fósseis na região de Afar, na Etiópia, que incluíam o famoso esqueleto denominado "Lucy". Eram primatas de constituição leve, talvez com cerca de 137 cm de altura e, provavelmente, tão inteligentes quanto os atuais chimpanzés. (p. 203)

Uma importante diferença entre os seres humanos e os outros primatas está no fato de que as crianças humanas precisam de muito mais tempo para passar na infância; elas demoram mais tempo para atingir a puberdade e a vida adulta do que qualquer um dos símios antropóides. (p. 203)

Devido a mudança genética no timing do desenvolvimento os símios antropóides nascidos prematuramente podem ter retido seus traços juvenis por mais tempo que os outros. (p. 204)

De acordo com essa hipótese, o desamparo dos filhotes nascidos prematuramente desempenhou um papel de importância crucial na transição dos símios antropóides para os seres humanos. Esses recém-nascidos exigiam famílias capazes de lhes dar sustentação, as quais podem ter formado as comunidades, as tribos nômades e as aldeias que se tornaram os fundamentos da civilização humana. As fêmeas selecionavam machos que tomariam conta delas enquanto estivessem cuidando de seus filhos e que lhes dariam proteção. (p. 204)

Como descrevem Margulis e Sagan: "Atirando pedras e espantando ou matando pequenos animais de presa, os primeiros seres humanos foram projetados num novo nicho evolutivo. As habilidades necessárias para planejar as trajetórias de projéteis, para matar a uma distância, dependiam de um aumento de tamanho do hemisfério esquerdo do cérebro. As habilidades de linguagem (que têm sido associadas com o lado esquerdo do cérebro...) podem ter acompanhado fortuitamente esse aumento de tamanho do cérebro". (p. 205)

Por volta de 1,6 milhão de anos atrás, o Homo habilis evoluiu numa espécie de indivíduos maiores e mais robustos, cujo cérebro expandiu-se ainda mais. Conhecida como Homo erectus ("ser humano ereto"), essa espécie persistiu por mais de um milhão de anos e se tornou muito mais versátil que suas predecessoras, adaptando suas tecnologias e modos de vida a uma ampla faixa de condições ambientais. Há indicações de que esses primeiros seres humanos podem ter conquistado o controle do fogo por volta de 1,4 milhão de anos atrás. (p. 205)

Toda a história evolutiva da espécie humana, desde a emergência do Homo habilis até a revolução agrícola, quase 2 milhões de anos mais tarde, coincidiu com as famosas eras glaciais. (p. 205)

Muitas espécies animais de origem tropical se extinguiram, e foram substituídas por espécies mais robustas e mais peludas - bois, mamutes, bisões e animais semelhantes - que podiam suportar às severas condições das eras glaciais. (p. 205)

Caçando juntos, também partilhavam seus alimentos, e essa partilha dos alimentos tornou-se outro catalisador para a civilização e a cultura humanas, originando finalmente as dimensões míticas, espirituais e artísticas da consciência humana. (p. 205)

David Brower concebeu uma narrativa engenhosa, comprimindo a idade da Terra nos seis dias da história bíblica da criação. (p. 206)

Pouco antes das 22 horas, alguns mamíferos tropicais que habitavam árvores evoluem nos primeiros primatas; uma hora depois, alguns destes evoluem em macacos; e por volta das 23:40 aparecem os grandes símios antropóides. Oito minutos antes da meia-noite, os primeiros símios antropóides do sul se erguem e caminham sobre duas pernas. Cinco minutos mais tarde, desaparecem novamente. A primeira espécie humana, o Homo habilis, surge quatro minutos antes da meia-noite, evolui no Homo erectus meio minuto mais tarde e, nas formas arcaicas do Homo sapiens, trinta segundos antes da meia-noite. Finalmente, a espécie humana moderna aparece na África e na Ásia onze segundos antes da meia-noite, e na Europa, cinco segundos antes da meia-noite. A história humana escrita começa por volta de dois terços de segundo antes da meia-noite. (p. 207)

Embora a diferenciação entre alma e espírito fosse fluida, e flutuasse ao longo do tempo, ambos originalmente unificavam em si mesmos duas concepções - a da força da vida e a da atividade da consciência. (p. 209)

A cibernética proporcionou à ciência cognitiva o primeiro modelo de cognição. Sua premissa era a de que a inteligência humana assemelha-se à "inteligência" do computador em tal medida que a cognição pode ser definida como processamento de informações - isto é, como uma manipulação de símbolos baseada num conjunto de regras. (p. 209)

Quando um animal é estudado enquanto está desperto e exercendo seu comportamento em circunvizinhanças mais normais, suas respostas neurais tornam-se sensíveis a todo o contexto dos estímulos visuais, e não podem mais ser interpretadas em termos de processamento de informações realizado etapa por etapa. (p. 210)

A cognição, de acordo com Maturana, é a atividade envolvida na autogeração e na autoperpetuação de redes autopoiéticas. Em outras palavras, a cognição é o próprio processo da vida. "Sistemas vivos são sistemas cognitivos", escreve Maturana, "e a vida como processo é um processo de cognição". (p. 210)

O sistema vivo não só especifica essas mudanças estruturais mas também especifica quais as perturbações que, vindas do meio ambiente, as desencadeiam. Esta é a chave da teoria da cognição de Santiago. As mudanças estruturais no sistema constituem atos de cognição. (p. 211)

Nessa nova visão, a cognição envolve todo o processo da vida - incluindo a percepção, a emoção e o comportamento - e não requer necessariamente um cérebro e um sistema nervosos. Até mesmo as bactérias percebem certas características do seu meio ambiente. (p. 211)

Os organismos vivos respondem a apenas uma pequena fração dos estímulos que se imprimem sobre eles. Todos nós sabemos que podemos ver ou ouvir fenômenos somente no âmbito de uma faixa de frequências; em geral, no nosso ambiente, não percebemos coisas nem eventos que não nos dizem respeito, e também sabemos que aquilo que percebemos é, em grande medida, condicionado pelo nosso arcabouço conceitual e pelo nosso contexto cultural. (p. 212)

A interação cognitiva do organismo com seu meio ambiente é interação inteligente. (p. 212)

Num certo nível de complexidade, um organismo vivo acopla-se estruturalmente não apenas ao seu meio ambiente mas também a si mesmo, e, desse modo, cria não apenas um mundo exterior, mas um mundo interior. Nos seres humanos, a criação desse mundo interior está intimamente ligada com a linguagem, com o pensamento e com a consciência. (p. 213)

O modelo do computador para a cognição como processamento de informações foi apenas uma formulação específica, baseada numa anologia errônea, da ideia mais geral de que o mundo é pré-dado e independente do observador, e que a cognição envolve representações mentais de suas características objetivas no âmbito do sistema cognitivo. A imagem principal, de acordo com Varela, é a de "um agente cognitivo que desceu de pára-quedas num mundo pré-dado" e que extrai suas características essenciais por intermédio de um processo de representação. (p. 213)

Nós, seres humanos, partilhamos um mundo abstrato de linguagem e de pensamento por meio do qual criamos juntos o nosso mundo. (p. 213)

Sabemos que gatos ou pássaros vêem árvores de maneira diferente daquela como nós vemos, pois eles percebem a luz em diferentes faixas de frequências. Dessa maneira, as formas e as texturas das "árvores" que eles criam serão diferentes das nossas. Quando vemos uma árvore, não estamos inventando a realidade. Mas as maneiras pelas quais delineamos objetos e identificamos padrões a partir da multidão de entradas (inputs) sensoriais que recebemos depende de nossa constituição física. (p. 213)

No entanto, esse pedaço de informação é uma quantidade, um nome ou uma breve afirmação que nós abstraímos de toda uma rede de relações, de um contexto no qual ela está encaixada e que lhe dá significado. (p. 214)

A mente não é uma coisa, mas um processo - o processo da cognição, que é identificado com o processo da vida. O cérebro é uma estrutura específica por cujo intermédio esse processo opera. Desse modo, a relação entre mente e cérebro é uma relação entre processo e estrutura. (p. 218)

Em vez de simplesmente reagir contra agentes estranhos, o sistema imunológico desempenha a importante função de regular o repertório celular e molecular do organismo. (p. 220)

A partir da perspectiva da teoria de Santiago, a atividade cognitiva do sistema imunológico resulta de seu acoplamento estrutural com seu meio ambiental. (p. 220)

O sistema imunológico não distingue, e não precisa distinguir, entre células do corpo e agentes estranhos, pois ambos estão sujeitos aos mesmos processos reguladores. No entanto, quando os agentes estranhos invasores são tão generalizados que não podem ser incorporados à rede reguladora, como por exemplo no caso de infecções, eles desencadearão no sistema imunológico mecanismos específicos que equivalem a uma resposta definitiva. (p. 220)

Na opinião de Varela, uma concepção psicossomática ("mente-corpo") sofisticada da saúde não será desenvolvida até que entendamos o sistema nervoso e o sistema imunológico como dois sistemas cognitivos em interação, dois "cérebros" em conversas contínuas. (p. 221)

De fato, Pert e seus colaboradores descobriram que esses mensageiros interligam três sistemas distintos - o sistema nervoso, o sistema imunológico e o sistema endócrino - numa única rede. (p. 221)

Os peptídios, uma família de sessenta a setenta macromoléculas, foram originalmente estudados em outros contextos e receberam outros nomes - hormônios, neurotransmissores, endorfinas, fatores de crescimento, e assim por diante. (p. 221)

Interligando células imunológicas, glândulas e células do cérebro, os peptídios formam uma rede psicossomática que se estende por todo o organismo. Eles constituem a manifestação bioquímica das emoções, desempenham um papel de importância crucial nas atividades coordenadoras do sistema imunológico e interligam e integram atividades mentais, emocionais e biológicas. (p. 221)

Outro aspecto fascinante da recém-reconhecida rede psicossomática é a descoberta de que os peptídios são a manifestação bioquímica das emoções. A maior parte dos peptídios, talvez todos eles, altera o comportamento e os estados de humor, e atualmente os cientistas têm por hipótese que cada peptídio pode evocar um "tom" emocional único. Todo o grupo de sessenta a setenta peptídios pode constituir uma linguagem bioquímica universal das emoções.
Tradicionalmente, os neurocientistas têm associado emoções com áreas específicas no cérebro, principalmente com o sistema límbico. Isso, de fato, está correto. O sistema límbico evidencia-se extremamente rico em peptídios. No entanto, esta não é a única parte do corpo onde se concentram os receptores de peptídios. Por exemplo, todo o intestino está revestido com receptores de peptídios. É por isso que temos "sensações na barriga". Nós, literalmente falando, sentimos nossas emoções na barriga.
Se é verdade que cada peptídio é mediador de um determinado estado emocional, isso significaria que todas as percepções sensoriais, todos os pensamentos e, na verdade, todas as funções corporais estão coloridas emocionalmente, pois todas elas envolvem peptídios. (p. 222)

Como se expressa Candace Pert: "Células brancas do sangue são pedacinhos do cérebro flutuando pelo corpo". (p. 223)

É a essa faculdade especial de autopercepção que me refiro quando utilizo o termo "consciência". (p. 224)

A comunicação, de acordo com Maturana, não é uma transmissão de informações mas, em vez disso, é uma coordenação de comportamento entre os organismos vivos por meio de um acoplamento estrutural mútuo. (p. 224)

No entanto, de acordo com Maturana, essas descrições semânticas são projeções feitas pelo observador humano. Na realidade, a coordenação de comportamento é determinada não pelo significado mas pela dinâmica do acoplamento estrutural. (p. 225)

Suponha que a cada manhã minha gata mia e corre até a geladeira. Eu a sigo, apanho um pouco de leite e o derramo na tigela, e a gata começa a bebê-lo. Isto é comunicação - uma coordenação de comportamento por meio de interações mútuas recorrentes, ou de acoplamento estrutural mútuo. (p. 226)

Ser humano é existir na linguagem. Na linguagem, coordenamos nosso comportamento, e juntos, na linguagem, criamos o nosso mundo. "O mundo que todos vêem", escrevem Maturana e Varela, "não é o mundo, mas um mundo, que nós criamos com os outros". (p. 227)

Numa conversa humana, nosso mundo interior de conceitos e de ideias, nossas emoções e nossos movimentos corporais tornam-se estreitamente ligados numa complexa coreografia de coordenação comportamental. (p. 227)

Dentre todas as espécies, somos a única que mata seus semelhantes em nome da religião, do mercado livre, do patriotismo e de outras ideias abstratas. (p. 229)

O sofrimento humano existencial surge, na visão budista, quando nos apegamos a formas e a categorias fixas criadas pela mente, em vez de aceitar a natureza impermanente e transitória de todas as coisas. (p. 229)

Tentando nos apegar às nossas rígidas categorias em vez de compreender a fluidez da vida, estamos fadados a experimentar frustração após frustração. (p. 229)

De acordo com a teoria de Santiago, criamos o eu assim como criamos objetos. Nosso eu, ou ego, não tem nenhuma existência independente, mas é o resultado do nosso acoplamento estrutural interno. (p. 230)

Somos indivíduos autônomos, modelados pela nossa própria história de mudanças estruturais. Somos autoconscientes, cientes da nossa identidade individual - e, não obstante, quando procuramos por um eu independente no âmbito de nosso mundo de experiências, não conseguimos encontrar nenhuma entidade desse tipo.
A origem de nosso dilema reside na nossa tendência para criar as abstrações de objetos separados, inclusive de um eu separado, e em seguida acreditar que elas pertencem a uma realidade objetiva, que existe independentemente de nós. (p. 230)

A identidade, a individualidade e a autonomia não implicam separatividade e independência. (p. 230)

Os economistas corporativos tratam como bens gratuitos não somente o ar, a água e o solo mas também a delicada teia das relações sociais, que é seriamente afetada pela expansão econômica contínua. (p. 233)

A economia enfatiza a competição, a expansão e a dominação; ecologia enfatiza a cooperação, a conservação e a parceria. (p. 234)

Todas as flutuações ecológicas ocorrem entre limites de tolerância. Há sempre o perigo de que todo o sistema entre em colapso quando uma flutuação ultrapassar esses limites e o sistema não consiga mais compensá-la. O mesmo é verdadeiro para as comunidades humanas. A falta de flexibilidade se manifesta como tensão. Em particular, haverá tensão quando uma ou mais variáveis do sistema forem empurradas até seus valores extremos, o que induzirá uma rigidez intensificada em todo o sistema. A tensão temporária é um aspecto essencial da vida, mas a tensão prolongada é nociva e destrutiva para o sistema. Essas considerações levam à importante compreensão de que administrar um sistema social - uma empresa, uma cidade ou uma economia - significa encontrar os valores ideais em vez de otimizá-la, isso levará, invariavelmente, à destruição do sistema como um todo. (p. 234)


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