quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

Brasil: Uma história - Cinco séculos de um país em construção - Eduardo Bueno (2010)


Mas foi no Brasil que surgiu um doa mais intrigantes achados da pré-história americana. Em 1974, no sítio da Lapa Vermelha, município de Pedro Leopoldo - MG, a equipe da arqueóloga Annette Laming-Emperaire encontrou o crânio de uma mulher - mais tarde batizado de "Luzia". Luzia teria morrido há cerca de onze mil anos. A surpresa do achado não está relacionada, portanto, com sua antiguidade (uma vez que ela se enquadra dentro da "hipótese Clóvis"). A questão realmente inovadora é que, tão logo o dr. Richard Neave, da Universidade de Manchester, na Inglaterra, realizou a reconstituição facial do crânio de Luzia, seus traços negroides ficaram evidentes.



Há indícios (ainda não inteiramente comprovados) de que os primeiros paleoíndios possam ter chegado ao Brasil há pelo menos 50 mil anos e talvez tenham vindo por via marítima, descendo ao longo da costa americana do Pacífico. Seja como for, é certo que por volta de doze mil A.P. (ao Antes do Presente, que, por convenção, significa "antes de 1950") - como dizem os arqueólogos - , durante a transição entre os períodos Pleistoceno e Holoceno, boa parte do território hoje brasileiro já se encontrava ocupado por grupos de caçadores e coletores pré-históricos. (p. 14)

Entre 6.500 e 2.000 A.P. surgiu, da região que agora é o Estado de São Paulo para o Sul, a tradição Humaitá. A agricultura desenvolveu-se a partir de 3.500 A.P., e a cerâmica, pouco depois. (p. 14)

Imagem relacionadaDurante meio século, passado nas mais árduas condições, Lund se entregou às páginas de pedra do grande livro que, ao longo doa milênios, a natureza havia inscrito nas reentrâncias encantadas das grutas de Minas Gerais. Penetrou em mais de duzentas cavernas e identificou as ossadas de 115 mamíferos pré-históricos. Em 1843, depois de descobrir fósseis como os do megatério (o "preguiça gigante") e de visitar inúmeras vezes a soberba gruta de Maquiné, Lund fez a mais espantosa de suas descobertas: os ossos do Homem de Lagoa Santa - os primeiros vestígios de ocupação humana até então encontrados no Novo Mundo. (p. 15)


A complexa e fascinante questão sobre quem foram os "primeiros brasileiros" passa, evidentemente, pela indagação primordial: quem foram os primeiros seres humanos a colonizar o que viria a ser chamado de América? Sabendo-se que jamais existiram, no continente, grandes primatas que pudessem evoluir para a forma humana, arqueólogos e antropólogos cedo partiram da premissa de que os homens haviam chegado ao Novo Mundo vindos de outro (ou outros) continentes. Mas de onde e quando?
A primeira e mais óbvia resposta apontava para uma migração através do estreito de Behring - transformado sazonalmente em uma ponte de gelo que, durante os períodos glaciais, unia o extremo leste da atual Sibéria, na Ásia, ao extremo oeste do Alasca, na América.
Os arqueólogos norte-americanos, baseados numa série de estudos e evidências, consideram o período entre 11 mil e 11.500 anos A.P. o mais propício para aquela dificílima travessia. E o fato de os mais antigos vestígios arqueológicos encontrados na América do Norte terem justamente essa datação - 11.500 anos A.P. - levou a absoluta maioria da comunidade acadêmica a decretar que a chamada "cultura Clóvis" (assim batizada devido a um sítio encontrado na localidade de Clóvis, no Novo México) fora a pioneira na ocupação da América. (p. 16)

E foram descobertas realizadas na América do Sul aquelas que com mais intensidade abalaram a teoria de acordo com a qual o continente teria sido ocupado somente ao redor do ano 11.500 A.P., após um único fluxo migratório (realizado por populações de origem mongol - portanto, asiáticas). (p. 16)

Graças a tal constatação, os arqueólogos passaram a trabalhar, a partir de 1996, com o chamado "modelo das Quatro Migrações". De acordo com essa nova hipótese - que vem ganhando cada vez mais força entre os especialistas -, a América teria sido ocupada a partir de quatro fluxos migratórios. Os três últimos foram, todos eles, empreendidos por populações mongóis (cujo DNA é o mesmo das populações indígenas atuais). Anteriormente aos três fluxos dos mongóis, no entanto, teria havido um ciclo migratório de povos não mongóis, cujos traços eram muito similares aos dos atuais africanos e aborígenes australianos. Esse grupo ancestral - que também povoara a Ásia em tempos remotos - teria sido assimilado, ou substituído, pelas levas mongóis. (p. 17)


A história brasileira não celebra um único herói indígena - nem aqueles que ajudaram os portugueses a conquistar a terra, como o Tupiniquim Tibiriçá, que salvou São paulo em 1562; o Temiminó Arariboia, que tomou parte na vitória sobre os franceses em 1567; ou o Potiguar Felipe Camarão, que ajudou a derrotar os holandeses em 1649. O "cacique" Kayapó Raoni é um herói - mas não no Brasil. É um herói para alguns europeus cheios de boas intenções e má consciência. Raoni parece ter-se tornado uma imagem. Uma imagem tão incongruente quanto a do quadro Último Tamoio, de Rodolfo Amoedo, reproduzido ao lado. Na história real, nenhum jesuíta jamais chorou a morte do último Tamoio - que eram aliados dos franceses e foram abandonados pelos padres. Haverá alguém para chorar pelo último Ionimâmi? (p. 18)

Os Tupinambá constituíam o povo Tupi por excelência - o pai de todos, por assim dizer. As demais tribos Tupi eram, de certa forma, suas descendentes, embora o que de fato as unisse fosse a teia de uma inimizade crônica. (p. 20)

Dos baixos lamacentos do que é o atual Estado do maranhão às longas extensões arenosas da costa do sul do Brasil, praticamente todo o litoral brasileiro estava ocupado por tribos do grupo Tupi-Guarani quando, em abril de 1500, Pedro Álvares Cabral desembarcou nas praias de areias faiscantes de Porto Seguro. Havia cerca de 500 anos, Tupinambá e Tupininquim tinham assegurado a posse dessa longa e recortada costa, expulsando, para os rigores do agreste, as tribos "bárbaras", que eles chamavam de "Tapuí". (p. 20)

Tupiniquim: Foram os indígenas que tomaram contato com a expedição de Cabral. Viviam em dois territórios: no sul da Bahia e em São Paulo, entre Santos e Bertioga. Eram 85 mil. (p. 20)

Carijó: Seu território ia de Cananeia-SP até a Lagoa dos Patos-RS. Considerados "o melhor gentio da costa", foram receptivos à catequese. Isso não impediu sua escravização em massa por parte dos colonos de São Vicente. Em 1564, participaram de um grande ataque a São paulo. Eram cerca de 100 mil. (p. 20)

A vingança era o objetivo primordial do ritual antropofágico praticado pelos grupos Tupi que habitavam o litoral do Brasil. O costume causou espanto e horror entre os exploradores e colonizadores europeus. Ao lado, efigie do líder tribal Cunhambebe, chefe Tamoio que teria "deglutido" mais de 60 portugueses. (p. 23)

As ordens eram claras: a portentosa esquadra de Pedro Álvares Cabral estava em missão rumo à Índia. Deveria seguir pela rota descoberta por Vasco da Gama, estabelecer relações comerciais e diplomáticas com o samorun de Calicute e, de imediato, fundar uma feitoria em pleno coração do reino das especiarias. Por isso, apesar da exuberância da paisagem, da complacência dos nativos e das benesses do clima, os portugueses permaneceram apenas dez dias nas paragens paradisíacas da Ilha de Vera Cruz. (p. 32)

O pau-brasil pode não ter dado seu nome ao país. Mas foi com certeza ele que batizou seu povo: eram chamados de "brasileiros" aqueles que traficavam o "pau de tinta". Se prevalecessem as regras gramaticais, os nativos do Brasil deveriam se chamar brasilienses. (p. 39)

Pela absoluta falta de interesse da alta nobreza lusitana, as capitanias brasileiras acabaram sendo concedidas a membros da burocracia estatal e a militares e navegadores ligados à conquista da Índia. Além das vastas porções de terra (cada lote tinha, em média, 250 quilômetros de largura, estendendo-se até o limite ainda não demarcado de Tordesilhas, em algum lugar no interior do continente misterioso), os donatários receberam também poderes verdadeiramente "majestáticos". Podiam legislar e controlar tudo em suas terras - menos a arrecadação de impostos reais. Em compensação, deveriam arcar com todas as despesas da colonização. Os lotes foram repartidos aleatoriamente, levando em conta apenas acidentes geográficos da costa, mas ignorando por completo a divisão territorial estabelecida há séculos pelas tribos indígenas - e, acima de tudo, desconsiderando se eram tribos aliadas ou hostis aos portugueses. Tamanho descuido custaria caro aos portugueses. (p. 44)

Apesar do parentesco bom, Tomé de Souza fez a si mesmo - especialmente nos campos de batalha do Marrocos e nos mares da Índia, como soldado e navegador. Tornou-se fidalgo em julho de 1537. Enviado ao Brasil anos depois (sem mulher e a filha), recebia o ótimo ordenado de 400 mil-réis anuais. Ainda assim, preferiu abandonar a colônia, por achar que fundar uma nação com degredados equivalia a "jogar na terra a má semente". (p. 49)

O arcabuzeiro alemão Hans Staden é um dos personagens mais cativantes do Brasil colonial. Disposto a conhecer os mistérios de além-mar, partiu de Hesse, na Alemanha, para Portugal, com intenção de visitar a Índia. Uma vez em Lisboa, acabou por engajar-se, como artilheiro, num navio com destino a Pernambuco. Lá chegou em 1547, logo se envolvendo na luta contra os indígenas. Em 1548, de volta à Europa, alistou-se numa expedição espanhola ao rio da Prata. Depois de várias peripécias e naufrágios, foi parar em Bertioga-SP na mesma época em que lá estava Tomé de Souza. Empregou-se como arcabuzeiro na fortaleza que o governador mandara erguer na ilha se Santo Amaro. Em janeiro de 1554, Staden caiu prisioneiro dos Tupinambá e foi levado para Ubatuba. Lá, viveu como cativo por nove meses e meio. Escapou de ser devorado porque, além de se fazer passar por francês (aliados dos Tupinambá), chorava e gemia cada vez que se via ameaçado. Os nativos o consideraram indigno de ser abatido. Em 1555, de volta à Europa, decidiu narrar suas aventuras em um livro intitulado Descrição verdadeira de um país de selvagens nus, ferozes e canibais, situado no Novo Mundo América, desconhecido na Terra de Hessen, antes e depois do nascimento de Cristo até que, há dois anos, Hans Staden de Homberg, em Hessen, por sua própria experiência, o conheceu, o livro tornou-se um best-seller desde sua primeira edição, em Marburg, em 1557. Em 1925, foi traduzido para o português por Monteiro Lobato. (p. 50)

Julgar o conjunto da obra jesuítica à luz de conceitos atuais, porém, é incorrer num erro tão gritante quanto o dos próprios padres quinhentistas em sua pretensão de avaliar a mentalidade e os costumes indígenas de acordo com as crenças e os dogmas da Europa de fins do século XVI - uma época marcada pela intolerância religiosa, pelo etnocentrismo e, acima de tudo, pela Contrarreforma. (p. 52)

Em pouco tempo todos os aspectos "culturais" da empresa colonial lusitana foram entregues aos jesuítas, encarregados também da conversão dos "gentios" na Índia (e em toda a Ásia) e no Brasil. As colônias - especialmente o Brasil - se desenvolveriam sem livros, sem universidades, sem imprensa sem debates nem inquietações culturais: em uma palavra, sem o frescor do humanismo renascentista. "A inteligência brasileira viria a constituir-se submetida à direção exclusiva da Companhia de Jesus, sob a égide da Contrarreforma e do Concílio de Trento", como diagnosticou Wilson Martins. "Esse desejo de perpetuar a ignorância (...) condicionaria as perspectivas mentais do Brasil por três séculos". (p. 55)

Embora para algumas almas mais crédulas os trópicos estivessem de tal forma impregnados pelo mal que "por obra do próprio demônio o nome de 'Santa Cruz' foi substituído pela voz bárbara de 'Brasil'", a maioria dos degredados e dos colonos comungava da crença segundo a qual "não existia pecado ao sul do Equador" - era a doutrina do "Ultra equinoxialem non peccatur". De acordo com o relato estupefato de padre Nóbrega, feito dez anos depois de sua chegada à Bahia, "se contarem todas as casas desta terra, todas acharão cheias de pecados mortais, adultérios, fornicações, incestos e abominações (...) não há obediências, nem se guarda um só mandamento de Deus e muito menos os da Igreja". (p. 62)

Na verdade, o principal motivo para o desembarque dos horrores persecutórios da Inquisição num lugar onde "não existia pecado" esteve diretamente ligado ao aumento da população de cristãos-novos (judeus recém-convertidos ao cristianismo) na colônia. A maioria deles mantinha relações comerciais com a Holanda - em guerra contra a Espanha, cuja Coroa havia absorvido a de Portugal. Por isso, em 1592, em dos maiores crimes que se podia cometer no Brasil seria praticado por aquele que, aos sábados, ousasse trajar "o melhor vestido que tinha". (p. 63)

Nos anos 1920, dois devotados historiadores, Afonso Taunay e Alfredo Ellis Jr., Começaram a forjar o mito bandeirante. Os documentos que acharam e publicaram revelam uma saga de horrores. Ainda assim, Taunay e Ellis Jr., preferiram fabricar a imagem do bandeirante altivo e galhardo, como se esses caçadores de homens fossem os "Três Mosqueteiros". Mas ambos sabiam que muitos dos bandeirantes andavam descalços, mal falavam português e estavam treinados para escravizar e matar. (p. 64)

Certa ocasião, em tenso diálogo com um diplomata espanhol, o rei da França, Francisco I, proferiu a frase que a história se encarregaria de imortalizar: "Gostaria de ver a cláusula do testamento de Adão que me afastou da partilha do mundo...". O monarca francês evidentemente se referia ao Tratado de Tordesilhas - o acordo planetário que Portugal e Espanha tinham assinado em 1494, dividindo o mundo entre si, com bênção papal. (p. 79)

Tolerante, competente, dedicado e ágil, Nassau fez um governo brilhante. Primeiro, tomou Porto Calvo, último foco da resistência aos invasores. Depois, atraiu os plantadores luso-brasileiros, concedendo-lhes empréstimos para reerguerem seus engenhos - e os defendeu da agiotagem dos negociantes holandeses e judeus, limitando os juros a 18% ao ano. Deu liberdade de culto, tratou bem os nativos, aumentou a produção de açúcar, urbanizou o Recife, protegeu os artistas, apaziguou a colônia. Foi um príncipe. (p. 101)

Em 1808, ao visitar o Brasil, John Luccock, um inglês, comentou que os brancos se sentiam "fidalgos demais para trabalhar em público". Meio século depois, Thomas Ewbank, também britânico, dizia que, no Brasil, "um jovem preferiria morrer de fome a abraçar uma profissão manual". Segundo ele, a escravidão tornara "o trabalho desonroso - resultado superlativamente mau, pois inverte a ordem natural e destrói a harmonia da civilização". As críticas não eram arrogância britânica: para Luís Vilhena, mestre português que ensinava grego na Bahia, o Brasil era o "berço da preguiça". (p. 131)

Ficou decidido que, no dia em que fosse decretada a derrama, uma revolução eclodiria. Os planos para o golpe eram tão vagos quanto os projetos do futuro governo. Em tese, a revolta levaria à fundação, em Minas, de uma república independente, cuja capital seria São João del Rei. O Distrito Diamantino seria liberado, assim como a exploração do ferro e a industrialização. Seriam construídos hospitais, criada uma universidade e abolida a escravidão. O governo seria entregue a Tomás Antônio Gonzaga, por três anos - a seguir, seriam convocadas eleições livres. Minas estava destinada a ser, portanto, uma espécie de paraíso na Terra. (p. 140)

Tiradentes pode ter sido mero bode expiatório no trágico desfecho da Conjuração Mineira. Mas a decência com a qual se comportou ao longo do lento e tortuoso processo judicial e, acima de tudo, a altivez com que enfrentou a morte, tornaram-no, no ato, não apenas a maior figura do movimento, mas também um dos grandes heróis do Brasil. (p. 142)

Quando D. João fundou o Banco do Brasil, em 12 de outubro de 1808, só havia três bancos emissores no mundo. A ideia, portanto, em tese, era boa. Mas, criado com capital inicial de 1.200 contos e com objetivo de gerar fundos para manter a Corte no Brasil, o banco logo passou a emitir mais do que arrecadava. A seguir, começaram os desfalques, os desvios e os "extravios" do dinheiro. Em vez de "proceder a rigoroso inquérito, como aconselhava a salvação da instituição", o governo "impôs o silêncio pela violência aos que davam curso àqueles boatos", como relatou, injuriado, em 1821, o conselheiro Pereira da Silva. Seu colega, o conselheiro José Antônio Lisboa, também lastimou "o mau uso que se fazia dos fundos do Banco e as prevaricações de seus empregados". Em abril de 1829, quando as notas emitidas pelo banco já tinham sido desvalorizadas em 190% com relação ao ouro, o então ministro da fazenda Miguel Calmon (mais tarde marquês de Abrantes) apresentou à Câmara dos Deputados proposta para dissolução da instituição. Após calorosos debates, no dia 11 de dezembro de 1829 - data na qual se esgotavam os privilégios previstos na fundação - , o Banco do Brasil foi então liquidado judicialmente. Só seria restabelecido um quarto de século mais tarde, em 1853. (p. 154)

Ao trazer cerca de 12 mil acompanhantes na sua transmigração para o Brasil, D. João VI, ao chegar ao Rio, não se viu forçado apenas a achar lugar para toda aquela gente morar. Também foi preciso dar-lhes um emprego - e um emprego público, é claro. (p. 154)

Favorito da Rainha Elizabeth I, com quem teve um caso, Walter Raleigh foi uma das dinâmicas e controversas figuras da colonização inglesa. Descobridor das Guianas e primeiro colonizador dos EUA (fundou a Virgínia e a Carolina do Norte), sir Walter Raleigh, tido como o introdutor do tabaco na Inglaterra, ficou conhecido como o "homem que pesou a fumaça". Para ganhar uma aposta, colocou um charuto numa balança, fumou-o e pesou as cinzas. A diferença entre uma medida e outra era "o peso da fumaça". O mais romanesco dos ingleses se tornou um herói popular. (p. 169)

O príncipe não estava bem. Teria sido a água salobra de santos ou algum prato condimentado do jantar da noite anterior? Não se sabe - nem ele o sabia. O fato é que uma diarreia o atacara, e a cavalgada pela tortuosa estrada que o conduzia da baixada santista ao platô de São paulo não tinha ajudado em nada na recuperação do combalido ventre principesco. No instante em que o major Antônio Ramos Cordeiro e o correio real Paulo Bregaro, que tinham partido do Rio de Janeiro em direção a Santos com um maço de cartas urgentes para D. Pedro, chegaram às margens do riacho Ipiranga, divisaram alguns membros da guarda de honra parados numa colina. D. Pedro estava à beira do córrego, "quebrando o corpo" - agachado para "responder a mais um chamado da natureza". A correspondência lhe foi entregue enquanto ele ainda abotoava a braguilha do uniforme. As circunstâncias não eram as mais indicadas para a "perpetração da façanha memorável". Mas as notícias eram de tal forma definitivas e perturbadoras que, depois de ler, amassar e pisotear as cartas, D. pedro montou "sua bela besta baia", cavalgou até o topo da colina e gritou à guarda de honra: "Amigos, as Cortes de Lisboa nos oprimem e querem nos escravizar... Deste dia em diante, nossas relações estão rompidas".
Após arrancar a insígnia portuguesa de seu uniforme, o príncipe sacou a espada e, às margens plácidas do Ipiranga, bradou heroico e retumbante: "Por meu sangue, por minha honra e por Deus: farei do Brasil um país livre". Em seguida, erguendo-se dos estribos e alçando a espada, afirmou: "Brasileiros, de hoje em diante nosso lema será: Independência ou morte". Eram quatro horas da tarde do dia 7 de setembro de 1822, e o sol, em raios fúlgidos, brilhou no céu da pátria naquele instante. (p. 178)

Um projeto de Constituição foi rapidamente elaborado e, em 25 de março de 1824, era promulgada a primeira carta Magna do Brasil - e ela perduraria, quase inalterada, até fevereiro de 1891. A Constituição de 1824 estabeleceu um governo monárquico, hereditário e constitucional representativo. O imperador, inviolável e sagrado, não estava sujeito a responsabilidade legal alguma: exercia o Poder Executivo com os ministros (escolhidos por ele) e o Moderador com seus conselheiros. Também podia escolher um entre os três senadores eleitos por província e suspender ou convocar os Conselhos Provinciais e a Assembleia Geral.
A eleição para a Câmara dos Deputados (eleitos pelo "povo", por voto indireto) era temporária: a eleição para o Senado era vitalícia (e, graças a manobras políticas, o imperador acabava apontando não um, mas os três senadores de cada província). Para ser eleitor era preciso ter pelo menos 25 anos e 100 mil-réis de renda anual. Para ser deputado, era necessário ter 200 mil-réis de renda anual e, para ser senador, a renda necessária era de 800 mil-réis por ano. Os presidentes das províncias eram diretamente escolhidos pelo imperador. (p. 184)

Em 1800, Bonifácio voltou a Lisboa e foi nomeado intendente das Minas e Metais. Depois, participou da luta contra o invasor francês. Só retornou ao Brasil em 1819. Baixinho, curvado, grisalho, de olhar malicioso, vaidoso, enérgico, teimoso, ateu e mulherengo, Bonifácio se tornou o principal arquiteto da independência. (p. 185)

Como a confiabilidade dos regentes no Exército fora fortemente abalada, o ministro da Justiça, Diogo Feijó, foi autorizado a criar uma Guarda Nacional. A nova tropa - também chamada de "milícia cidadã", já que seus integrantes eram voluntários e não recebiam soldo - se transformaria na principal base de sustentação militar da Regência Trina Permanente. E foi também a partir desse episódio que os termos "coronel" e "coronelismo" começaram a se misturar à história do Brasil, pois os chefes políticos de diversas províncias da nação - em geral grandes proprietários de terra - assumiram altas patentes na nova milícia. (p. 194)

Entre as muitas vítimas da Guerra dos farrapos - os ex-escravos e guerrilheiros negros, os imigrantes alemães recrutados à força pelos farrapos, os milhares de bois que tiveram suas línguas cortadas para não serem utilizados pelo inimigo -, uma das principais foi a verdade. Durante anos, a guerra foi tema tabu: era proibido escrever sobre ela. Só em 1870 apareceu no Brasil o primeiro livro sobre o conflito: era, as Memórias de Garibaldi, por Dumas. Desde então, a maior parte dos textos foi escrita no Sul por autores gaúchos e inverte uma tendência da historiografia mundial: faz apologia dos vencidos. (p. 203)

Em janeiro de 1893, Joaquim Nabuco havia escrito para André Rebouças, o amigo que muito o influenciara e que então se achava no exílio voluntário na África: "Com que gente andamos metidos! Hoje estou convencido de que não havia uma parcela de amor ao escravo, de desinteresse e de abnegação em três quartas partes dos que se diziam abolicionistas. Foi uma especulação a mais! A prova é que fizeram essa república e depois dela só advogam a causa dos bolsistas [investidores da bolsa de valores], dos ladrões da finança, piorando infinitamente a condição dos pobres. (...) Estávamos metidos com financistas, e não com puritanos, com fâmulos de banqueiros falidos, mercenários e agiotas..." (p. 235)

Num país que adotou a ficção jurídica segundo a qual as leis "pegam" ou "não pegam", não é de estranhar que as imposições contra o tráfico de escravos e contra a própria escravidão tenham demorado tanto para "pegar". (p. 236)

O positivismo é a escola filosófica nascida das ideias do pensador francês Augusto Comte (1798-1857). Em meio a uma série de teorias, baseadas em sua "filosofia da história" e na sua "classificação das ciências", Comte criou o que ele próprio chamou de "religião da humanidade" - um culto não teísta no qual Deus seria substituído por uma humanidade racional e evoluída, que atingiria esse estágio "mais elevado" tão logo fosse conduzida a ela por "homens mais esclarecidos". Para Comte, a melhor forma de governo era a ditadura republicana - um "governo de salvação nacional exercido no interesse do povo". O ditador comtiano, em tese, deveria ser representativo, mas poderia "afastar-se" do povo em nome do "bem da república". Não é difícil entender por que os "militares científicos" se apaixonaram pela tese. (p. 247)

Todos os descaminhos da política e da economia brasileiras se materializaram plenamente nos dez primeiros anos da República. Escândalos financeiros, arrocho salarial, clientelismo, aumento dos impostos, regime oligárquico, coronelismo, repressão aos movimentos populares, desvio de verbas, impunidade, fraude eleitoral, fechamento do Congresso, estado de sítio, crimes políticos, confronto entre governos civis e governos militares, alternância no poder da forma mais equivocada com o novo governo devastando a obra do governo anterior - houve de tudo na primeira década republicana. (p. 250)

Depois de portugueses e africanos, foram os italianos aqueles que chegaram em maior número ao Brasil: 1,6 milhão em mais de cem anos (921 mil apenas entre 1886 e 1900). O segundo maior contingente de imigrantes veio da Espanha: 694 mil em um século. Os alemães vêm a seguir, com 250 mil. Os japoneses ocupam o quarto lugar, com 229 mil imigrantes. Esses povos não modificaram apenas os hábitos, a língua, as formas de pensar, de agir e de se alimentar: mudaram a própria imagem que o país fazia de si mesmo. (p. 274)

Enquanto na serra gaúcha os primeiros imigrantes italianos produziam vinho e hortifrutigranjeiros, na cidade de São Paulo, alfaiates, padeiros, sapateiros, donos de cantina criavam novos bairros, como o Bexiga, a Mooca e o Brás, modificando para sempre a face urbana da nação. (p. 277)

A primeira mulher a desfilar usando calças no Brasil percorre a Avenida Central, antes de ser agredida por transeuntes. (p. 286)














Após uma campanha incendiária que agitou as principais capitais do país, em 15 de novembro de 1910, o senador Pinheiro Machado anunciou à nação que o marechal Hermes da Fonseca fora vencedor, tendo recebido os célebres "400 mil votos redondos". (p. 293)

Por "sugestão" de Bernardes, cada estado reuniu uma convenção de líderes municipais; a essa seguiu-se, em setembro de 1925, a convenção nacional na qual Washington Luís proclamado candidato único à Presidência. Em 1º de março de 1926, a chapa unânime recebeu 98% dos votos numa das eleições mais calmas da história brasileira. Foi a consagração final de um sistema trapaceiro. (p. 305)

O objetivo principal da Coluna Prestes, decidido na reunião de 12 de abril de 1925, era percorrer todo o interior do Brasil para propagar o ideal revolucionário e conscientizar a população rural, fazendo-a sublevar-se contra o domínio exploratório exercido pelas elites "vegetais". (p. 312)

Disposta a evitar o choque frontal com as tropas legalistas do governo, a Coluna se deslocava rapidamente de um vilarejo para outro - e seu maior efeito parece ter sido inspirar o mais profundo terror entre as populações rurais à simples menção da palavra "revolução". (p. 313)

Após a Revolução de 30, todos os chefes revolucionários retornariam ao Brasil para ocupar cargos no governo Vargas - todos, menos Luis Carlos Prestes.
No exílio, ele se tornara marxista e logo iniciaria a luta pela Revolução Comunista, dentro e fora do Brasil. (p. 313)

Resultado de imagem para A Coluna da morteA épica marcha da Coluna Prestes jamais conseguiu arregimentar o apoio das classes rurais brasileiras, mas acabou inspirando o líder chinês Mao Tsé-Tung. (p. 313)

Solto em 1945, Prestes aliou-se a seu maior inimigo, Getúlio Vargas e, como chefe do então legalizado Partido Comunista, elegeu-se deputado federal, com a maior votação do país. Em 1948, com o PCB de novo na clandestinidade, Prestes fugiu do Brasil e viveu anos na União Soviética, da qual se tornou vassalo leal. Em 1957, Prestes obteve o direito de voltar ao país por mandato judicial e apoiou João Goulart em 1961. Com o golpe militar de 1964, viu-se forçado a fugir outra vez - deixando para trás documentos que comprometeram vários companheiros. Retornou ao Brasil depois da anistia de 1978 e participou da campanha das Diretas Já. Stalinista ferrenho, conspirador e disciplinador, doutrinário e doutrinador, dúbio e drástico, Prestes morreu aos 92 anos, em 1990, mantendo segredo e alimentando o mito de suas várias e fracassadas "ações revolucionárias". (p. 315)

Resultado de imagem para Floro e Padre CiceroFloro Bartolomeu Costa e o padre Cícero se conheceram e se associaram em 1908, quando, disposto a explorar as minas de cobre de Coxa (Ceará) o padre entrou em choque com o fazendeiro Antônio Pequeno e decidiu contratar os "serviços" do dr. Floro. Os dois homens mais conhecidos de Juazeiro formaram um exército de jagunços e assumiram o controle da região. Em 1924, uma imensa estátua do Padim Ciço foi erguida na cidade. O padre morreu em 1934, mas continua sendo venerado como santo no Nordeste. (p. 315)

Em 12 de abril de 1926, depois de praticar os mais variados crimes e saques, atacando cidades e plena luz do dia, Lampião foi transformado em "capitão" legalista, recebendo, por ordem do deputado Floro Bartolomeu Costa e do padre Cícero, fuzis Mauser e trezentos homens. Tinha ordens de perseguir a Coluna Prestes. Quando descobriu que o governo não pretendia anistiá-lo e que o documento que o tornara capitão do Exército não tinha validade legal, desistiu da caçada humana e - com as novas armas - retornou aos saques, aos assaltos e aos crimes. (p. 317)

A imagem mais emblemática - e afrontosa - do golpe de 1930 é a dos correlegionários de Vargas amarrando seus cavalos no obelisco da avenida Rio Branco, no coração do Rio de Janeiro. Mas o fato é que suas tropas - que também se locomoveram de trem e em caminhões militares - foram saudadas pelo povo ao chegar à capital. (p. 327)

No discurso de posse, Getúlio prometera "promover, sem violência, a extinção progressista do latifúndio, desmontar a máquina do filhotismo parasitário e sanear o ambiente moral da pátria". Surgia um estado forte, paternalista, centralizador e nacionalista. Acabava-se o federalismo descentralizado e liberal da "república dos fazendeiros". A intervenção do estado na economia crescia: os sindicatos e as relações trabalhistas passaram a ser controladas pelo governo. Empresas estrangeiras eram obrigadas a ter dois terços de empregados brasileiros e a pagar um tributo de 8% sobre os lucros enviados ao exterior. Em breve, Vargas se sentiria forte o bastante para tentar perpetuar-se no poder. (p. 339)

Após o golpe dentro do golpe que foi o movimento que resultou no Estado Novo, manifestações populares ao estilo nazifascista se tornaram comuns no Brasil, que ingressou em uma era policialesca. A imagem do ditador passou a ilustrar as cartilhas escolares produzidas pelo DIP. (p. 340)

Em maio de 1959, JK recebeu Fidel castro no Rio de janeiro e homenageou o líder da Revolução Cubana. Em junho, no ato mais espetaculoso de seu governo, JK rompeu negociações com o fundo Monetário Internacional (FMI), afirmando que o Brasil não era "mais o parente pobre relegado à cozinha". Era o início de uma política externa "desalinhada" da dos Estados Unidos - que acabaria desembocando no golpe militar de 1964. Com a posse de Jânio Quadros, em 1961, o Brasil manteria a mesma postura da era JK. Jânio não apenas se recusou a apoiar o bloqueio dos Estados Unidos a Cuba como - além de enviar Jango à China e à Alemanha Oriental e saudar o astronauta soviético Gagárin - voltou a homenagear Fidel e concedeu ao guerrilheiro Che Guevara, em Brasília, a mais alta insígnia nacional: a Ordem do Cruzeiro do Sul. (p. 369)

Para o udenista Mário Martins, cinco personagens históricos pareciam ter influenciado Jânio: Cristo, Shakespeare, Lincoln, Lênin e Chaplin. "O problema é que nunca se sabe quando ele imita esse ou aquele (...) Às vezes procuramos Cristo e damos de cara com Lênin!". Para Lacerda - que durante a campanha dissera que Jânio tinha "cheiro de povo" -, o presidente era "o mais mutável, o mais desequilibrado, o mais pérfido de todos os homens públicos que apareceram no Brasil". A melhor definição, porém, parece ter sido a de Afonso Arinos. Para o ministro das Relações Exteriores de Jânio, ele era "a UDN de porre". (p. 370)

O episódio seria premonitório do racha que logo dividiria a bossa nova em "direita" e "esquerda", em "participantes" e "alienados". Após o golpe de 1964, o compositor Geraldo Vandré dissera: "Temos de fazer música 'participante'. Os militares estão prendendo e torturando. A música tem de servir para alertar o povo" ("Quem alerta é corneta de regimento", responderia Roberto Menescal.) Sérgio Ribeiro seguiria a linha proposta por Vandré. Mas o disco que de fato rachou a bossa nova foi Opinião de Nara, de Nara Leão, base do show Opinião, de Oduvaldo Viana Filho e Paulo Pontes, dirigido por Augusto Boal, o qual, além de ser um dos pontos altos do Teatro Opinião, foi a primeira reação artística da esquerda ao golpe, inaugurando a "ideologia da pobreza" que, logo a seguir, tanto importunaria a cultura brasileira. Mas os gênios da bossa nova nem deram bola e seguiram seu caminho - não deixando de ser menos libertários e ousados por causa disso. Na verdade, sua música permanece eterna enquanto as "canções de protesto" daquela época soam enfadonhamente datadas. (p. 405)

Embora os médicos se referissem a um certo "divertículo de Meckel", o que Tancredo Neves de fato tinha era um tumor no abdômen. Para oferecer ao país um quadro otimista, médicos e assessores mentiram durante um mês para toda a nação. "O presidente andou pelo quarto, fez exercícios respiratórios. Está sem febre e acabou o risco de complicações respiratórias", bradava o primeiro comunicado oficial, dando o tom de falsa esperança que se reproduziu a partir daí. O coordenador da junta médica formada para acompanhar o caso, Henrique Walter Pinotti (que se autodenominava "professor doutor"), não revelou à família as reais condições de Tancredo. (p. 420)

Sarney é o retrato vivo de que, em pleno século 21, o Brasil ainda guarda resquícios de uma política quase feudal e do quanto ainda falta para o país tornar-se uma nação verdadeiramente moderna. (p. 422)

Por intermédio de PC Farias foram arrecadados milhões de dólares que contribuíram para a eleição de Collor. Não se sabe ao certo quanto PC amealhou. Sabe-se apenas que o dinheiro não apenas são parou de entrar depois da vitória de Collor como, ao contrário, passou a afluir em quantidade ainda maior após a eleição. Baseado em sua ligação com as empreiteiras, PC teria armado o maior esquema de propina já concebido no Brasil - uma rede de influência que envolveria "porcentagens" de até 22% para a aprovação de qualquer projeto. O esquema começaria a ser desmontado depois de Pedro Collor, irmão do presidente e ex-amigo de PC, denunciar a "parceria" entre Fernando e o tesoureiro. Segundo Pedro, PC dizia abertamente que, do dinheiro arrecadado, "70% é do chefe, 30% é meu". (p. 429)

A posse de Floriano Peixoto em novembro de 1891, após a renúncia de Deodoro da Fonseca; a posse de Café Filho em agosto de 1954, após o suicídio de Vargas; a posse de João Goulart em setembro de 1961, após a renúncia de Jânio Quadros, e, especialmente, a posse de José Sarney no lugar de Tancredo Neves, em março de 1985, deveriam ter ensinado aos brasileiros a lição de que, fosse quem fosse, o vice-presidente deveria ser levado em conta na hora de eleger um presidente. No entanto, durante as eleições que conduziram Fernando Collor ao Planalto, pouquíssimos eram os eleitores que sabiam quem eram os vices do vencedor Collor e do vencido Lula. (p. 433)




quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

Bons profissionais e excelentes profissionais - Augusto Cury (2008)

Nos primeiros trinta segundos de tensão cometemos os maiores erros de nossa vida. A sabedoria recomenda que quando somos contrariados, não deveríamos estar debaixo da ditadura da resposta, mas no oásis do silêncio. (p. 20)

Mas quem decifra a sua intuição criativa? Somos treinados para dar respostas fechadas, começando pelas provas escolares. Existe uma ideia acadêmica falsa sustentando que os melhores alunos são os que tiram as melhores notas, os que registram com mais exatidão as informações nas provas.
Esse conceito pode ser uma verdade para os anais da escola clássica, ms não para a escola da existência, a escola social. Os melhores alunos no teatro social são os que aprenderam a decifrar intuitivamente os códigos da inteligência. São os que expressam seus pensamentos, ousam, criam, inventam, imaginam. São os que caem, levantam e não desistem de caminhar. São os que encantam, envolvem, lideram. (p. 21)

A maior tarefa de um ser humano é ser líder de si mesmo e a maior tarefa de um líder é sair da plateia, entrar no palco da sua mente e ser autor da sua história. (p. 26)

Um ser humano sem história é um livro sem letras, uma foto sem imagem, um rio sem nascente. Com lágrimas ou júbilo, acertos ou falhas, nossa história é um tesouro insubstituível... (p. 29)

O córtex cerebral tem milhões de janelas e cada janela contém pelo menos milhares de experiências e informações. Através das janelas nós interpretamos os estímulos, vemos a vida e reagimos aos eventos.
Quanto maior o número de janelas abertas, maior será a dimensão do raciocínio. Se o numero de janelas for restrito, podemos transformar uma barata em um dinossauro, um elevador em um cubículo sem ar, um conflito entre palestino e judeu em um fenômeno intransponível. (p. 29)

O problema é que o pensamento usado na educação e comunicação social, o pensamento dialético, é apoiado em um número reduzido de janelas. O uso excessivo do pensamento dialético travou a inteligência humana. Só alguns vencem esse bloqueio e brilham como pensadores. (p. 30)

Quem não critica o que crê não lapidará suas crenças, quem não lapida suas crenças será servo das suas verdades. E se suas verdades são doentias, certamente será uma pessoa doente. (p. 36)

Jesus insistia em dizer que era o filho da humanidade: "Sou o filho do homem". Tal expressão assombrosa revela que ele não tinha raça, cor, nacionalidade, religião. Foi o primeiro homem sem fronteiras, mas os homens querem aprisioná-lo em seus mundos e dogmas e fazê-lo sua propriedade. (p. 38)

Julgar comportamentos é um raciocínio lógico-linear, analisar as causas é um raciocínio histórico-psíquico. Excluir pela cor da pele, religião, casta social, é um raciocínio lógico-linear; incluir, solidarizar-se, apoiar, é um raciocínio histórico com abrangência psíquica, social e existencial. Ter ataques de ciúmes e inveja são raciocínios lógico-lineares, compreender e dar liberdade são raciocínios multiangulares. (p. 39)

Quem ama o poder não é digno dele. Certamente o usará para controlar as pessoas e se perpetuar nele. (p. 40)

As universidades, com as devidas exceções, são templos doentios, que formam pessoas doentes para viver em uma sociedade doente. Preparam jovens para dizer amém para o sistema e não para repensá-lo. (p. 43)

Alguns professores de psicologia discorrem sobre as doenças psíquicas sem exaltar o doente, sem valorizar sua complexidade e criatividade. Não mostram que cada ser humano tem um mundo fascinante para ser desvendado. (p. 43)

Infelizmente as religiões e o sistema educacional falharam muito em não estudar os códigos da inteligência de Cristo. Muitas atrocidades teriam sido evitadas. (p. 45)

Quem corrige o insensato recebe afronta contra si. Quem o deixa se perder em seu caos dá-lhe oportunidade para se reconstruir. (p. 45)

Um bom profissional faz tudo o que lhe pedem, enquanto um excelente profissional surpreende, faz além do que os outros esperam. (p. 51)

Seria um absurdo se observássemos um motorista tirar as mãos do volante e deixar o carro seguir ao seu bel-prazer. Colisões aconteceriam, ferimentos imprevisíveis seriam gerados. Mas esse absurdo ocorre em nossa psique. As pessoas deixam suas emoções soltas, sem direcionamento, sem gerenciá-las minimamente.
Submetem-se ao seu humor triste, fóbico, depressivo, pessimista, como se fossem marionetes, como se não tivessem nenhum poder gerencial. Não têm consciência que essas emoções são registradas em segundos nos bastidores da sua mente, e uma vez arquivadas não podem ser mais deletadas. (p. 58)

Exigir de um filho ou aluno que reconheça seus erros e sejam sóbrios no exato momento em que erram é uma afronta. Exigir que nosso cônjuge, parceiro(a) ou namorado (a) seja coerente durante uma crise de ansiedade é um desrespeito. Cobrar dos funcionários lucidez e reflexão no exato momento em que tropeçam ou falham é uma injustiça. Nesses momento, tais pessoas estão presas pelas janelas killers, bloquearam milhares de outras janelas, não têm, portanto, condições de pensar, analisar, refletir, enfim de pensar por múltiplos ângulos.
No primeiro momento, espere que a temperatura emocional de quem falhou abaixe, dê um momento para ele respirar, refletir. Espere uma hora, um dia, uma semana, o que for necessário. No segundo momento, seja gentil e o elogie. Encontre pontos nos quais ele possa ser valorizado, ainda que você tenha dificuldades de encontrá-los. Enfim, conquiste a sua emoção. Somente no terceiro momento aponte os erros, disseque as falhas. (p. 70)

A vida é um grande e complexo texto, que precisa de muitas vírgulas para ser escrito, ainda que essas vírgulas assumam em alguns momentos o formato de lágrimas. (p. 95)



A Reputação na velocidade do pensamento - Mário Rosa (2006)

Inocência e ingenuidade, hoje em dia, é acreditar que alguns comportamentos que poderiam passar desapercebidos e impunes até bem pouco tempo irão inevitavelmente continuar com esse salvo conduto. Ser ingênuo ou inocente hoje é desprezar os perigos embutidos em nossas ações, antes de praticá-las. (p. 76)

É por isso que a propaganda deixou de ser a alma do negócio. Porque no mundo do Homo Byten não basta apenas ser conhecido. Não basta apenas ser famosos e ter seu nome massificado: é preciso ser respeitado. (p. 122)

Com a palavra, o guru da computação Ray Kurzweil:
- Até por volta do ano 1000, uma mudança de paradigma demorava milhares de anos. Do ano 1000 em diante, a velocidade passou para uma quebra de paradigma a cada 100 anos.
Hoje, ele calcula, um fosso histórico se abre no intervalo de uma década!
Logo, estamos sendo "fabricados" por aquilo que fabricamos de uma forma muito mais impressionante. O computador, a Internet, a tecnologia digital, tudo isso são criações humanas que estão criando novas formas de expor as reputações humanas, fabricando um novo contexto à nossa volta, o que exige de nós uma rapidez muito maior de auto-reinvenção. (p. 191)

Ingenuidade é pensar que os outros são sempre mais ingênuos. (p. 210)

Mostra as palmas das mãos para cima: Aceitação, concordância. Segundo Sr. A.E. Scheflen, um dos cientistas que estuda essa matéria: "Sempre que uma mulher mostra a palma da mão, está cortejando você - quer ela o saiba ou não". (p. 67)


segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

A lei de Deus contra a liberdade dos homens - Jean-Louis Schlegel (2009)

Notemos que, se os integristas católicos reivindicam a Tradição, os fundamentalistas protestantes abraçam o fundamento das Escrituras, na linha luterana e calvinista da sola Scriptura, da Escritura como fonte e fundamento único da Revelação e da fé. (p. 25)


domingo, 4 de dezembro de 2016

A escola que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir - Rubem Alves (2001)

Na tarde mágica da Escola da Ponte, os pássaros voaram de um certo poema de Ruy Belo e foram pousar nos ombros dos que estavam sentados em redor do contador de estórias, do homem grande que gosta de brincar. Então, ele que está escrevendo a estória de Pinóquio ao contrário: não a estória do Pinóquio que é um boneco de madeira ao qual a escola transforma num menino de carne e osso e alma de gente, mas a estória do menino de carne e osso e alma de gente ao qual a escola transforma num adulto de madeira, rígido e triste como Pinóquio. (p. 26)

Bernardo Soares: "O que vemos não é o que vemos, senão o que somos". (p. 27)

"Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo", dizia Wittgenstein. (p. 28)

É preciso esquecer o que se sabe a fim de ver o que não se via. (p. 29)

Aforismo que repito sempre: "Numa terra de fugitivos, aquele que anda na direção contrária parece estar fugindo". O poeta T.S. Eliot, que o escreveu, pôs o fugitivo no singular: um ser solitário. (p. 35)

Vamos começar do começo. Imagine o homem primitivo, exposto à chuva, ao frio, ao vento, ao sol. O corpo sofre. O sofrimento faz pensar: "Preciso de abrigo", ele diz... Aí, forçada pelo sofrimento, a inteligência entra em ação. Pensa para deixar de sofrer. Pensando, conclui: "Uma caverna seria um bom abrigo contra a chuva, o frio, o vento, o sol..." Instruídos pela inteligência, os homens procuram uma caverna e passam a morar nela. Resolvido o sofrimento, a inteligência volta a dormir. Mas aí, forçados pela fome ou por um grupo armado que lhes toma a caverna, eles são obrigados a se mudar para uma planície onde não há cavernas. O corpo volta a sofrer. O sofrimento acorda a inteligência e faz com que ela trabalhe de novo. A solução original não serve mais: não há cavernas. A inteligência pensa e conclui: "É preciso construir uma coisa que faça as vezes de caverna. Essa coisa tem de ter um teto, para proteger do sol e da chuva. tem de ter paredes, para proteger do vento e do frio. Com que se pode fazer um teto?" A inteligência se põe então a procurar um material que sirva para fazer o teto. Folhas de palmeira? Campi? Pedaços de pau? Mas o teto não flutua no ar. Tem que haver algo que o sustente. Paus fincados? Sim. Mas para fincar um pau é preciso descobrir uma ferramenta para cortar o pau. Depois, uma ferramenta para fazer o buraco na terra. E assim vai a inteligência, inventando ferramentas e técnicas, à medida que o corpo se defronta com necessidades práticas. A inteligência, entre os esquimós, jamais pensaria uma casa de pau a pique. Entre eles não há nem madeira nem barro. Produziu o iglu. E a inteligência é essencialmente prática. Está a serviço da vida. (p. 56)

E o que vi com clareza foio mesmo que viu Joseph Knecht, o personagem central do livro de Hesse O jogo das contas de vidro: depois de chegar no topo, percebeu o equívoco. E surgiu, então, o seu grande desejo: ensinar uma criança, uma única criança que ainda não tivesse sido deformada (essa é a palavra usada por Hesse) pela escola. (p. 67)

Hoje, vivemos (diz-se) numa sociedade democrática onde se defendem (diz-se) valores democráticos. Fala-se em liberdade, solidariedade, igualdade, fraternidade, verdade... No entanto, a capacidade de pensar, imaginar, inovar, expressar é constantemente inibida, agredida, recalcada. Podemos dizer que muitas crianças são inibidas de pensar o que lhes "apetece". Quanto mais pensamentos "atrevidos" tiverem, mais ferozmente serão censuradas. Muitas crianças são coagidas a pensar o que é "normal pensar-se", são coagidas a produzir o que é "normal produzir-se". (p. 77)

Hoje, somente restam vestígios da "estrutura tradicional", que transformamos em cavoucos sobre os quais assentamos os andaimes de uma escola que já não é herdeira ou tributária de necessidades do século XIX. (p. 101)


sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

Andar, falar, pensar - Rudolf Steiner (2007)

Na vida posterior o homem experimenta o sabor do alimento com a boca, com o palato, com a língua. Na criança isto não ocorre, especialmente nos três primeiros anos, quando o sabor atua através de todo o organismo. A criança saboreia até com os membros o leite materno e a primeira alimentação. (p. 11)

Ora, a criança aprende também a falar primeiramente através de todo o seu organismo. Considerando o assunto desta forma, temos em primeiro lugar o movimento exterior, o movimento das pernas, que provoca o contorno forte; o articular dos braços e das mãos, que produz a flexão, a plasticidade das palavras. Vemos como é transformado interiormente, na criança, o movimento exterior em movimento da fala. (p. 17)

E uma das falsidades consiste no fato de acreditarmos fazer bem à criança reduzindo-nos, pela fala, ao nível infantil. Em seu inconsciente, porém, a criança não quer ser interpelada em linguagem infantil - quer ouvir, isto sim, algo que corresponda à autêntica linguagem do adulto. Falemos, portanto, à criança como estamos habituados, e evitemos uma linguagem especialmente dirigida. (p. 18)


quinta-feira, 1 de dezembro de 2016

As quatro armadilhas da mente e a Inteligência Multifocal - Augusto Cury (2008)

Decifrar os códigos da inteligência nos faz entender que não somos deuses, mas seres humanos imperfeitos. Decifrar os códigos do eu como gestor do intelecto, da resiliência, do carisma, do altruísmo, da autocrítica, do debate de ideias, da intuição criativa, não é um dever, mas um direito de cada ser humano que busca ter uma mente brilhante e procura a excelência emocional, social e profissional. É um privilégio daqueles que compreendem que quando a sociedade nos abandona, a solidão é suportável. Quando nós mesmos nos abandonamos, ela é intolerável. (p. 6)

Como pesquisador da complexa inteligência, não me curvaria diante de nenhuma autoridade política e de nenhuma celebridade, mas me curvaria diante de todos os professores e alunos do mundo. São eles que podem mudar o teatro social. São atores insubstituíveis. (p. 8)

O senso comum acredita falsamente que sua memória é subutilizada. Uns creem que usam 10%, outros 20% e ainda outros um pouco mais da sua memória. mas esse pensamento popular é ingênuo, simplista e, portanto, precisa de correções. A memória é seletiva. Além disso, abre e fecha dependendo da emoção que estamos vivenciando em determinado momento existencial. (p. 16)

A Psicologia Multifocal tem sido usada por inúmeros profissionais de saúde mental e em pesquisa, em teses de mestrado e doutorado e cursos de pós-graduação. Apesar da difusão da teoria, quero deixar claro que nenhuma teoria é verdadeira em si. Ela é um corpo de postulados, hipóteses, conceitos, argumentos, dos quais se derivam os conhecimentos. (p. 18)

O conceito global de inteligência entra em três grandes estágios ou três grandes áreas. A duas primeiras são inconsciente e a última, consciente.
A primeira área é mais profunda , refere-se aos fenômenos inconscientes que atuam em milésimos de segundos no resgate e na organização das informações da memória e consequentemente na construção de pensamentos e emoções. Essa produção é registrada milhares de vezes por dia pelo fenômeno RAM (registro automático da memória), construindo a plataforma que forma o Eu, que é a expressão máxima da consciência crítica e capacidade de escolha. Tudo o que percebemos, sentimos, pensamos, experimentamos, tornam-se tijolos na construção dessa plataforma de formação do Eu.
A segunda área se refere ao corpo das complexas varáveis que influenciam em pequenas frações de segundos os fenômenos que leem a memória e produzem os pensamentos, imagens mentais, ideias e fantasias. Entre essas variáveis destaco "como estou" (estado emocional e motivacional), "quem sou" (a história existencial arquivada nas janelas da memória), "onde estou" (ambiente social), "quem sou geneticamente" (natureza genética e a matriz metabólica cerebral) e o "como atuo como gestor da psique" ( o Eu como diretor do roteiro de nossa história). (p. 24)

O Eu como gestor psíquico, administrador do intelecto, é apenas um dos códigos da inteligência. Se mesmo sendo um bom gestor psíquico não dominamos completamente os pensamentos e as emoções da complexa mente humana, imagine se não decifrarmos esse código, imagine se abrirmos mão dessa gestão que ocorre nessa segunda grande área da inteligência. (p. 25)

Ao estudarmos a primeira e segunda grande área da inteligência podemos concluir que Homo sapiens, capaz de desenvolver equações matemáticas, fórmulas físicas e lógicos programas de computador, pode ser tão ilógico a ponto de produzir reações agressivas, desproporcionais, irracionais. Peritos em lidar com números podem perder sua lógica e reagir estupidamente à mínima contrariedade. (p. 26)

A terceira grande área da inteligência se refere aos resultados das duas primeiras áreas. Nessa área se encontram os comportamentos perceptíveis, capazes de serem analisados, avaliados, aferidos. Nessa área se evidencia a rapidez de raciocínio, o grau de memorização, a capacidade de assimilação de informações, o nível de maturidade nos focos de tensão, bem como os patamares de tolerância, inclusão, solidariedade, generosidade, altruísmo, segurança, timidez e empreendedorismo. (p. 27)

Os que se atolam de atividades, os que têm uma agenda saturada de compromissos e preocupações frequentemente são ótimos para os outros, mas carrascos de si mesmos. (p. 27)

Eis o grande e inaceitável paradoxo: o homo sapiens, ao longo da história, aprendeu a decifrar sua inteligência para atuar no teatro social, mas não aprendeu a decifrá-la para atuar no teatro psíquico, gerir sua peça intelectual. Somos tímidos espectadores onde deveríamos ser ágeis atores. (p. 29)

Podemos conviver com pessoas injustas, mas ninguém pode ser mais injusto conosco do que nós mesmos. Deveríamos lutar contra nossas mazelas psíquicas, mas nos intimidamos dentro de nós. E fora de nós, onde deveríamos agir com tolerância, nos tornamos combativos, machucamos quem não merece. Vivendo em uma sociedade superficial que não calibra nosso foco, erramos o alvo frequentemente. (p. 30)

Quem é especialista em cobrar e controlar os outros está apto para trabalhar em uma financeira e lidar com números, mas não com pessoas. (p. 30)

Muitos usam protetor solar e óculos escuros para se protegerem contra raios ultravioletas, mas não usam protetores para filtrar o lixo psíquico mais grosseiro a que se expõem. Não é esse um paradoxo absurdo e inadmissível? Temos de nos questionar: já gastamos tempo construindo esse filtro psíquico? Se não gastamos, teremos grande chance de gastar dinheiro com tratamentos. (p. 31)

Em que universidade se treina sistematicamente os alunos para decifrar o código da capacidade de pensar antes de reagir? Os universitários judeus, palestinos, europeus, chineses, americanos, saem com milhões de informações em seu intelecto. Muitos decifram a linguagem da razão, mas poucos a da sensibilidade e do carisma. Muitos decifram a linguagem do individualismo, mas poucos a do altruísmo, por isso não entendem que os fortes usam as ideias, enquanto que os fracos, as armas. Os fracos impões suas verdades, os fortes as submetem ao debate; os fracos segregam-se em seus feudos, os fortes lutam pela espécie humana. (p. 33)

Alguns dizem: "Eu sou sincero. Sou marcadamente honesto, tudo o que vem à minha mente eu falo". Na realidade, seu excesso de honestidade é um reflexo de que não decifraram o código do autocontrole. São servos de seus impulsos. Há pessoas insuspeitas que lesam seriamente o direito dos outros. (p. 34)

Que você seja um vendedor de sonhos. Ao fazer os outros sonhar, não tenha medo de falhar. E se falhar, não tenha medo de chorar. E, se chorar, repense a sua vida, mas não desista, dê sempre uma nova chance a si mesmo e a quem ama. (p. 34)

Enxergar os outros com nossos olhos é uma tarefa superficial, não exige treinamento. Mas enxergá-los com os olhos deles exige refinado treinamento. Sem decifrar esses códigos, ainda que sejamos profissionais de saúde mental, jamais entenderemos as lágrimas que não foram choradas, as dores que não foram expressas, os conflitos que não foram verbalizados. (p.034)

Não somos um número de cartão de crédito, uma conta bancária, mas seres humanos únicos. Apesar dos nossos defeitos, somos estrelas vivas no teatro da existência. (p. 35)

Líderes políticos e religiosos, se não decifrarem o código de se colocar no lugar dos que o confrontam, cometerão canibalismo psíquico. Bloquearão, silenciarão, excluirão. creiam, o canibalismo não foi extinto na atualidade, apenas assumiu outras formas. Alguns anulam seus pares em nome dos seus dogmas, outros em nome da nação, religião, ideologia, raça, teoria "científica". (p. 35)

Há um mundo a ser descoberto dentro de cada ser humano. Há um tesouro escondido nos escombros das pessoas que sofrem. Só os sensíveis e sábios os descobrem. (p. 38)

Existem ferramentas ou códigos universais? Devido à diversidade cultural, genética, religiosa, é questionável uma teoria psicológica falar em ferramentas ou códigos universais para explorar a mente humana, pois o que serve para um europeu não serve para um indiano, o que serve para um americano não é útil para um africano. Correto!
Entretanto, depois de mais de duas décadas de análise sistemática do funcionamento da mente, estou convicto de que realmente existem uno psiquismo humano ferramentas ou códigos intelectuais que transcendem a cultura, religião, povo, sexo. Descobri-las e utilizá-las, metodológica ou intuitivamente, pode determinar onde uma pessoa vai chegar em suas atividades sociais, profissionais e afetivas. (p. 39)

Nenhum pensamento é verdadeiro, mas uma interpretação da realidade. No ato de interpretação, o estado emocional (como estamos), social (onde estamos). personalidade (quem somos), metabolismo cerebral (genética), entram em cena causando micro ou macro distorções. Por isso, a verdade é um fim inatingível. (p. 40)

O ódio e o amor, a arrogância e a humildade, nascem em fontes muito próximas, em fontes que transcendem os limites das leis da matemática, no indecifrável e imprevisível mundo da mente humana. Quem aprende a decifrar os mais excelentes códigos da inteligência deixa o mundo intolerante e inflexível da lógica e dos números, e se humaniza. Torna-se paulatinamente resiliente, maleável, solidário, sensível, compassivo, paciente, generoso, magnânimo. Quanto mais decifra os códigos, mais uma pessoa se torna um ser humano e menos deixa de ser um deus rígido e autossuficiente. Infelizmente, como não aprendemos a decifrar os códigos, temos mais deuses do que seres humanos na humanidade. (p. 41)

Pequenas mudanças nesses ambientes deslocam a interpretação. Uma simples mudança em nosso estado emocional de tranquilidade para ansiedade diante de um mesmo comportamento de um filho expresso em dois momentos distintos, gerará interpretações distintas, ainda que em alguns casos imperceptíveis. Tranquilo, um pai pode ser tolerante com o erro de um filho; ansioso, pode ser implacável diante de um mesmo comportamento.
Quem acha que seus pensamentos são verdadeiros tem vocação para ser Deus e não humano. A verdade humana nunca é pura, mas interpretativa. Quando deciframos o código da inteligência nos tornamos mais flexíveis, tolerantes, inclusivos. (p. 47)

O conformista acredita que todas as coisas são obras do destino, já o ativista acredita que o destino é uma questão de escolha. O conformista é vítima do seu passado, o ativista é autor da sua própria história. O conformista vê a tempestade e se amedronta, o ativista vê no mesmo ambiente a chuva e enxerga a oportunidade de cultivar. O conformista se aprisiona no passado, o ativista se liberta no presente. (p. 60)


Há os que lutam pelo que pensam, batalham por suas ideias, mas se acham pobres miseráveis diante de sua impulsividade, irritabilidade, humor depressivo, ou sintomas psicossomáticos como dores de cabeça, dores musculares, queda de cabelo, gastrite, fadiga excessiva. Não levam desaforo para casa, mas diariamente levam desaforo para dentro. (p. 70)

O coitadista, bem como o conformista, não entende que ambição é vital para o Eu mudar as suas rotas. Não entende que a energia da ambição suplanta a energia do desejo. Desejo é uma intenção superficial. Ambição é um projeto de vida. Desejo é alicerçado pelo ânimo, ambição é alicerçada pela garra. Os ambiciosos só descansam quando atingem suas metas, os coitadistas descansam antes de entrar na raia. (p. 72)

O medo de reconhecer erros é, acima de tudo, o medo de se assumir como um ser humano com suas imperfeições, defeitos, fragilidades, estupidez, incoerência. Formamos nossa personalidade em uma sociedade superficial que esconde nossa humanidade e supervaloriza nosso endeusamento. (p. 75)

O melhor educador não é o que controla, mas o que liberta. Não é o que aponta os erros, mas o que previne. Não é o que corrige comportamentos, mas o que ensina a refletir. Não é o que desiste, mas o que estimula a começar tudo de novo. (p. 77)

Como abordo no livro Pais brilhantes, professores fascinantes, quanto pior for a qualidade da educação neste século mais importante será o papel da psiquiatria e da psicologia clínica. Não têm tido elas papéis em franco processo de crescimento? (p. 79)

Reconhecer nossas debilidades, entrar em contato de maneira nua e crua com nossa realidade, não é apenas um passo fundamental para oxigenar a inteligência, reeditar nossa memória e superar nossos conflitos, mas também para mergulharmos nas águas de descanso, para bebermos das fontes mais excelentes da tranquilidade. (p. 81)

Lembre-se de que os tranquilizantes podem diminuir a agitação psíquica, mas não produzem a tranquilidade existencial. As técnicas psicoterapêuticas podem expor as causas de nossas mazelas, mas só nós podemos mudar nosso estilo de vida. É preciso decifrar os códigos da inteligência para cumprir esses nobres objetivos. (p. 82)

No ápice da carreira, conquistam-se aplausos, mas sepulta-se a intrepidez. Os maiores perigos para a inteligência de um executivo não surgem quando sua empresa atravessa dificuldades, mas quando navega em céu de brigadeiro. Nesse estágio não experimentam novos processos, métodos, ideias. Ninguém gosta do caos, mas ele pode ser uma fonte de oportunidades criativas. (p. 86)





sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Além do bem e do mal - Friedrich Nietzsche (2005)

E, se observei corretamente, em geral a "não liberdade de arbítrio" é vista como problema por dois lados inteiramente opostos, mas sempre de maneira profundamente pessoal: uns não querem por preço algum abandonar sua "responsabilidade", a fé em si, o direito pessoal ao seu mérito (as raças vaidosas estão deste lado -); os outros, pelo contrário, não desejam se responsabilizar por nada, e, a partir de um autodesprezo interior, querem depositar o fardo de si mesmos em algum outro lugar. Estes últimos, quando escrevem livros, costumam agora tomar a defesa dos criminosos; uma espécie de compaixão socialista é o disfarce que mais lhe agrada. (p. 26)

Pois o homem indignado, ou quem está sempre dilacerando e rasgando a si mesmo (ou, em seu lugar, o mundo, Deus, a sociedade) com os próprios dentes, pode ser moralmente superior ao sátiro sorridente e satisfeito, mas em qualquer outro sentido ele é o caso mais comum, mais irrelevante, menos instrutivo. E ninguém mente tanto como o indignado. (p. 32)

Independência é algo para bem poucos: - é prerrogativa dos fortes. E quem procura ser independente sem ter a obrigação disso, ainda que com todo o direito, demonstra que provavelmente é não apenas forte, mas temerário além de qualquer medida. Ele penetra num labirinto, multiplica mil vezes os perigos que o viver já traz consigo; dos quais um dos maiores é que ninguém pode ver como e onde se extravia, se isola e é despedaçado por algum Minotauro da consciência. Supondo que alguém assim desapareça, isto ocorre tão longe do entendimento dos homens que eles não sentem nem compadecem: - e ele não pode voltar! já não pode retornar seque para a compaixão dos homens! (p. 34)

Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na Terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual - mas sem podermos decidir, com segurança, o que aí é causa e o que é efeito, e mesmo se existe uma relação de causa e efeito. (p. 49)

É com seu próprio deus que as pessoas são mais desonestas: não lhe é permitido pecar. (p. 62)

"Eu fiz isso", diz minha memória. "Eu não posso ter feito isso", diz meu orgulho, e permanece inflexível. Por fim - a memória cede. (p. 62)

Quem alcança seu ideal, vai além dele. (p. 63)

Em circunstâncias de paz, o homem guerreiro se lança contra si mesmo. (p. 63)

Quem se despreza, ainda preza a si mesmo como desprezador. (p. 63)

A mulher aprende a odiar na medida em que desaprende a - enfeitiçar. (p. 64)

Na afabilidade não há traço de ódio aos homens, mas precisamente por isso demasiado desprezo aos homens. (p. 65)

Maturidade do homem: significa reaver a seriedade que se tinha quando criança ao brincar. (p. 65)

Envergonhar-se da própria imoralidade: é um degrau da escada ao fim da qual nos envergonhamos da nossa moralidade. (p. 65)

Descobrir que é correspondido deveria na verdade desenganar o amante em relação ao ser amado. "Como? É modesta a ponto de te amar? Ou estúpida? Ou - ou -." (p. 65)

Não existem fenômenos morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos. (p. 66)

Quando o amor ou o ódio não participa do jogo, a mulher é jogadora medíocre. (p. 67)

Também o concubinato foi corrompido - pelo casamento. (p. 67)

Não odiamos enquanto nossa estima é pouca, mas quando estimamos alguém como igual ou superior. (p. 72)

As consequências do que fizemos nos alcança, indiferentes a que tenhamos "melhorado" nesse meio-tempo. (p. 73)

Na medida em que sempre, desde que existem homens, houve também rebanhos de homens (clãs, comunidades, tribos, povos, Estados, Igrejas), e sempre muitos que obedeceram, em relação ao pequeno número dos que mandaram - considerando, portanto, que a obediência foi até agora a coisa mais longamente exercitada e cultivada entre os homens, é justo supor que via de regra é agora inata em cada um a necessidade de obedecer, como uma espécie de consciência formal que diz: "você deve absolutamente fazer isso, e absolutamente se abster daquilo", em suma, "você deve". (p. 85)

Quando todos são iguais, ninguém precisa de direitos. (p. 90)

Nós, que somos de outra fé - nós que consideramos o movimento democrático não apenas uma forma de decadência das organizações políticas, mas uma forma de decadência ou diminuição do homem, sua mediocrização e rebaixamento de valor: para onde apontaremos nós as nossas esperanças? (p. 91)

A degeneração global do homem, descendo ao que os boçais socialistas veem hoje coo o seu "homem do futuro" - como o seu ideal! - , essa degeneração e diminuição do homem, até tornar-se o perfeito animal de rebanho (ou, como dizem eles, o homem da sociedade livre"), essa animalização do homem em bicho-anão de direitos e exigências iguais é possível, não há dúvida! Quem já refletiu nessa possibilidade até o fim, conhece um nojo a mais que os outros homens - e também, talvez, uma nova tarefa!... (p. 92)

Por mais gratos que sejamos ao espírito objetivo - e quem já não teria se cansado até à morte de tudo que é subjetivo e de sua maldita "mesmicidade"! - afinal deve-se ter cautela também com a própria gratidão, e refrear o exagero com que ultimamente a renúncia e despersonalização do espírito é celebrada, como quase um fim em si, como redenção e transfiguração: o que costuma suceder na escola dos pessimistas, a qual também tem boas razões, de sua parte, para prestar homenagem ao "conhecimento desinteressado". (p. 97)

Hoje o gosto e a virtude do tempo enfraquecem e diluem a vontade, nada é tão atual como a fraqueza da vontade: em consequência, no ideal do filósofo devem ser incluídas na noção de "grandeza" justamente a força da vontade, a dureza e a capacidade para decisões largas; com a mesma justificativa com que a doutrina inversa e o ideal de uma humanidade simplória, abnegada, humilde e desinteressada se adequavam a uma época inversa, uma tal que, como o século XVI, sofresse da sua energia de vontade acumulada e das selvagens marés e cheias do egoísmo. (p. 106)

Hoje, inversamente, quando na Europa somente o animal de rebanho recebe e dispensa honras, quando a "igualdade de direito" pode facilmente se transformar em igualdade na injustiça: quero dizer, em uma guerra comum a tudo que é raro, estranho, privilegiado, ao homem superior, ao dever superior, à responsabilidade superior, à plenitude de poder criador e dom de dominar - hoje o ser-nobre, o querer-ser-para-si, o poder-ser-distinto, o estar-só e o ter-que -viver-por-si são parte da noção de "grandeza". (p. 107)

Julgar e condenar moralmente é a forma favorita de os espiritualmente limitados se vingarem daqueles que o são menos, e também uma espécie de compensação por, terem sido descurados pela natureza; e, por fim, uma oportunidade de adquirirem espírito e se tornarem sutis - a malícia espiritualizada. (p. 112)

O que na mulher inspira respeito e com frequência temor é sua natureza, que é "mais natural" que a do homem, sua autêntica astuciosa agilidade ferina, sua garra de tigre por baixo da luva, sua inocência no egoísmo, sua ineducabilidade e selvageria interior, o caráter inapreensível, vasto, errante de seus desejos e virtudes... O que, com todo o temor, desperta compaixão por esse belo r perigoso felino "mulher", é o fato de ela parecer mais sofredora, mais frágil, mais necessitada de amor e condenada à desilusão que qualquer outro animal. (p. 131)

Pois enquanto essa tal força de adaptação, que está sempre a testar condições cambiantes e começa um novo trabalho a cada geração, cada decênio quase, não permite em absoluto a pujança do tipo; enquanto a impressão geral causada por esses futuros europeus será, provavelmente, a de trabalhadores bastante utilizáveis, múltiplos, faladores e fracos de vontade, necessitados do senhor, do mandante, como do pão de cada dia; enquanto a democratização da Europa resulta, portanto, na criação de um tipo preparado para a escravidão no sentido mais sutil: o homem forte, caso singular e de exceção. terá de ser mais forte e mais rico do que possivelmente jamais foi - graças à ausência de preconceitos em sua educação, graças à enorme diversidade de exercitação, dissimulação e arte. Quero dizer que a democratização da Europa é, simultaneamente, uma instituição involuntária para o cultivo de tiranos - tomando a palavra em todo sentido, também no mais espiritual. (p. 135)

Há dois tipos de gênio: o que antes de tudo fecunda e quer fecundar, e o que prefere ser fertilizado e dar à luz. Assim também existe, entre os povos de gênio, aqueles a quem coube o problema feminino da gravidez e a secreta missão de plasmar, amadurecer, consumar - os gregos, por exemplo, foram um povo desse tipo, e também os franceses - ; e aqueles que têm de fertilizar e ser causa de novas ordens da vida - como os judeus, os romanos e, perguntando com toda a modéstia, os alemães? -, povos enlevados e atormentados por febres desconhecidas, irresistivelmente arrastados para fora de si, apaixonados e ávidos de outras raças (as que "preferem ser fertilizadas"-), e com isso dominadores, como tudo que se sabe pleno de força fecundante e, portanto, de "graça divina". Esses dois tipo de gênio se procuram, tal como o homem e a mulher; mas também se entendem mal - como o homem e a mulher. (p. 142)

Apenas mediante esforço, com auxílio da história, o homem nobre pode considerar que desde tempos imemoriais, em todas as camadas de algum modo dependentes, o homem comum era somente aquilo pelo qual era tido - jamais habituado a estabelecer valores por si mesmo, tampouco se atribuía outro valor que não o atribuído por seus senhores (o autêntico direito senhorial é criar valores). Entenda-se como consequência de um enorme atavismo o fato de o homem ordinário ainda hoje esperar uma opinião sobre si, e depois submeter-se instintivamente a ela: mas não somente a uma opinião "boa", em absoluto, e sim também a uma ruim ou injusta (pense-se, por exemplo, na maior parte das autoapreciações e depreciações que as mulheres devotas aprendem dos confessores, e o cristão devoto em geral de sua Igreja).

O que é, afinal, a vulgaridade? - Palavras são sinais sonoros para conceitos; mas conceitos são sinais-imagens, mais ou menos determinados, para sensações recorrentes e associadas, para grupos de sensações. (p. 165)

Quanto mais um psicólogo - um nato e inevitável psicólogo e leitor de almas - voltar a atenção para os casos e seres mais seletos, maior será o perigo de ele sufocar de compaixão: ele necessita dureza e serenidade, mais que qualquer outro homem. (p. 167)

Os maiores acontecimentos e pensamentos - mas os maiores pensamentos são os maiores acontecimentos - são os últimos a serem compreendidos:  as gerações que vivem no seu tempo não vivenciam tais acontecimentos - passam ao largo deles. O corre algo semelhante no reino das estrelas. A luz das estrelas mais distantes é a última a chegar aos homens; e enquanto ela não chega, os homens negam que ali - haja estrelas. "De quantos séculos precisa um espírito para ser compreendido?" - eis aí também uma medida, com que se estabelece uma hierarquia e etiqueta de que há necessidade: para o espírito e para a estrela. (p. 174)

Toda filosofia também esconde uma filosofia, toda opinião é também um esconderijo, toda palavra também uma máscara. (p. 175)


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

A sociedade dos filhos órfãos - Sérgio Sinay (2012)

Quem se propuser a observar com honestidade e sem preconceito o cenário em que os habitantes desta sociedade e deste tempo vivem verá crianças e adolescentes à deriva, abandonados a um destino incerto, ou destinados a serem vítimas de todo tipo de comerciantes; de manipuladores ideológicos; de operadores midiáticos; de impunes experimentalistas pedagógicos, psicológicos, psiquiátricos e farmacológicos; de sinistros traficantes e dos mais variados tipos de domesticadores. (p. 9)

Ser pai, ser mãe não é um hobby ou uma atividade para as horas livres. Trata-se de um empreendimento de tempo integral (e mesmo quando não é estritamente no físico, é no emocional). (p. 43)


terça-feira, 15 de novembro de 2016

A vida na sarjeta - Theodore Dalrymple (2014)

O padrão desastroso das relações humanas que existe na subclasse também tem se tornado comum na escala social mais alta. Com frequência cada vez maior consulto enfermeiras, tradicionalmente e por muito tempo originárias ou pertencentes à respeitável classe média baixa (ao menos, após Florence Nightngale), que têm filhos ilegítimos de homens que, inicialmente, praticaram algum tipo de abuso, e depois as abandonaram. Essa violência e posterior abandono são, em geral, muito previsíveis dados o histórico e a personalidade desses homens, mas as enfermeiras que foram tratadas dessa maneira dizem que se abstiveram de julgar o companheiro porque é errado fazer juízo de valor. Se, contudo, não forem capazes de emitir um juízo sobre o homem com quem viverão e com quem terão filhos, sobre o que emitirão juízos? (p. 23)

Hoje a concepção prevalecente de vício, em geral, é a de uma doença caracterizada por um ímpeto irresistível (mediado neuroquimicamente e hereditário por natureza) para consumir uma droga ou uma substância, ou para se comportar de maneira autodestrutiva ou antissocial. Um viciado não tem culpa e, por seu comportamento ser a manifestação de uma doença, possui tanto conteúdo moral quanto as condições meteorológicas.
O efeito que um ladrão de carros relatou-me foi: o furto compulsivo de automóveis não era somente culpa sua, mas a responsabilidade por impedi-lo de apresentar aquele comportamento, neste caso, era minha, já que eu era o médico que o tratava. E até que a profissão médica encontrasse o equivalente comportamental de um antibiótico no tratamento da pneumonia, ele continuaria a causar um enorme sofrimento e inconveniente para os proprietários de carros e, ainda assim, considerar-se-ia, fundamentalmente, uma pessoa decente. (p. 31)

Os prisioneiros, invariavelmente, descrevem aos médicos e aos psicólogos as dificuldades de infância (que apresentam, na ocasião, como se fossem relíquias de família), os pais violentos ou ausentes, a pobreza e todas as dificuldades e desvantagens que são herança da raça urbana.
A perspectiva desonesta e interesseira fica aparente na postura com que tratam aqueles que acreditam ter-lhe feito mal. Por exemplo, sobre os policiais que supõem (volta e meia, de maneira razoável) que os tenham espancado não dizem: "Pobres policiais! Foram criados em lares autoritários e agora projetam sua raiva em mim, mas, na verdade, ela é dirigida aos pais que os maltrataram". Ao contrário, dizem com força e emoções explosivas: "os imbecis!". Pressupõem que a polícia age por livre-arbítrio para não dizer, por uma vontade malévola. (p. 33)

Os proprietários de estúdios de tatuagem são bastante tatuados, embora alguns deles, em nossas conversas privadas, tenham admitido que não se tatuariam, ao menos não numa extensão tão grande, caso pudessem voltar no tempo. (p. 77)

As tolices dos tolos são as oportunidades dos sábios, é claro. Aprendi pelas Páginas Amarelas que, para cada cinco estúdios de tatuagem, há três clínicas de remoção de tatuagem a laser (foi assim que nosso produto interno bruto cresceu). (p. 79)

Muitas vezes tentei fazer um experimento simples: numa enfermaria repleta de pacientes incapacitados, desliguei a televisão ou as televisões e deixei o recinto por cinco minutos. Infalivelmente, a televisão ou televisões estavam ligadas no momento em que eu retornava, mas quem as ligava de novo, nunca fui capaz de descobrir. Os pacientes não poderiam tê-lo feito, e as enfermeiras negam. É um mistério total, como o Sudário de Turim. As enfermeiras, no entanto, sempre dizem: "os pacientes querem a TV ligada" e continuarão a dizê-lo, muito embora uma votação informal normalmente revele o contrário.
Parece-me improvável prima facie que uma senhora de oitenta anos com hemiplegia do lado direito após um derrame, e com dificuldade de deglutição da própria saliva realmente queira assistir ao Mr. Motivador, um personal trainer fanático, numa roupa colante de lycra de cores fluorescentes, demonstrando, ao som de uma batida de discoteca incessante, os exercícios para o telespectador perder a celulite nas coxas. Há alguém na enfermaria, no entanto (um pós-modernista, talvez), que acredita que um momento sem entretenimento é um momento perdido, e que uma mente não preenchida pela bobagem de outro alguém é um vácuo do tipo que a natureza abomina. (p. 83)

Claramente, algo muito estranho está acontecendo em nossas escolas. Nossas práticas educacionais atuais são tão grotescas que seria uma afronta à pena de Jonathan Swift satirizá-la. Na grande área metropolitana em que trabalho, por exemplo, os professores receberam instruções de que não devem ministrar as tradicionais disciplinas de ortografia e gramática. Dizem que a atenção mesquinha aos detalhes da sintaxe e da ortografia inibe a criatividade da criança e a capacidade de autoexpressão. Além disso, afirmar que existe uma maneira correta de falar e de escrever é favorecer uma espécie de imperialismo cultural burguês; e dizer para a criança que ela fez algo errado é necessariamente conferir-lhe um senso de inferioridade debilitador do qual nunca se recuperará. (p. 94)

Infelizmente, é muito difícil derrubar esses incrementos pedagógicos (ou antipedagógicos) mesmo hoje, quando o governo central percebeu tardiamente as consequências desastrosas. Por quê? Primeiro, os professores e os professores dos professores nas faculdades de Pedagogia estão profundamente imbuídos dessas ideias educacionais que nos fizeram chegar a esse ponto. Segundo, uma enorme burocracia educacional cresceu na Inglaterra (um burocrata por professor, pululando como almirantes nas marinhas sul-americanas), que usa de todos os subterfúgios para evitar a mudança: da falsificação de estatísticas a interpretações errôneas intencionais da política do governo. (p. 97)

A nova ortodoxia para todas as classes é a seguinte: já que nada é melhor e nada é pior, o pior é melhor porque é mais popular. (p. 106)

Se os britânicos aceitassem, contentes, as desigualdades de renda como parte da natureza das coisas, realmente como precondição e consequência de uma sociedade livre, o efeito pernicioso da loteria nacional na moralidade da nação não seria tão grande. Seria apenas um pouco de diversão; mas a maioria dos britânicos equaciona desproporção de rendas com desigualdade e injustiça, e explica o impulso por tal enriquecimento súbito como uma espécie d vingança do pobre contra um sistema que permite a alguns acumularem uma enorme e injusta porção dos bens terrenos pelo talento e trabalho árduo. Ainda assim, há mais júbilo na Grã-Bretanha pela falência de um milionário que ficou rico pelos próprios méritos do que pelo enriquecimento de 99 pobres. (p. 124)

É a mente, e não a sociedade, que forja as algemas que mantêm as pessoas presas aos seus infortúnios. (p. 135)

O surgimento de uma subclasse indiana na Grã-Bretanha é uma questão de importância maior do que os números parecem sugerir. Não é uma resposta quase mecânica às condições econômicas, ao preconceito racial ou a qualquer outra forma de opressão amada pelos engenheiros sociais de esquerda. É a refutação de uma máxima marxista infinitamente perniciosa que tem corrompido a vida intelectual ao afirmar que "não é a consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser social que determina a consciência". Homens - até mesmo os adolescentes - pensam: e o conteúdo daquilo que pensam determina, em grande parte, o curso de suas vidas. (p. 144)

O pobre, escreveu um bispo alemão do século XVI, é uma mina de ouro; e assim, por sua vez, os moradores de rua. (p. 146)

A falta de um lar não é, ao menos na sociedade de hoje, a instância especial de uma lei, enunciada pela primeira vez por um colega médico britânico, de que a miséria aumenta para satisfazer os meios disponíveis para reduzi-la? E o comportamento antissocial não aumenta na proporção das desculpas criadas pelos intelectuais? (p. 153)

Quando externei minhas opiniões sobre os conjuntos habitacionais britânicos para um arquiteto inglês - a quem, em meu coração, imputava uma parte da culpa coletiva por aquela situação calamitosa - ele imediatamente replicou: "Sim, mas os chiqueiros fazem os porcos ou os porcos fazem os chiqueiros?" (p. 172)

É bem sabido que crianças inteligentes que não são suficientemente instigadas na escola e são obrigadas a repetir as lições que já entenderam só porque outros em sua classe, mais lentos do que elas, não as dominam, muitas vezes ficam inquietas, comportam-se mal e tornam-se até delinquentes; o que é menos percebido é que esse padrão destrutivo persiste igualmente na vida adulta. Os entediados - dentre os quais estão aqueles cujo grau de inteligência é muito incompatível com as exigências do ambiente cultural - frequentemente resolvem o problema ao fomentar crises facilmente evitáveis e totalmente previsíveis na vida pessoal. A mente, assim como a natureza, abomina o vácuo, e se nenhum interesse cativante foi desenvolvido na infância e na adolescência, tal interesse é imediatamente criado com os materiais que tem à disposição. O homem tanto é um animal criador de problemas como é um solucionador de problemas. Uma crise é melhor que o tédio permanente da insignificância. (p. 178)

Com um imenso aparato de Bem-Estar Social, que consome cerca de um quinto da renda nacional, não sobra nada para uma jovem de dezoito anos, como a que se consultou comigo semana passada, que se esforça mui valorosamente para escapar de sua triste experiência pregressa. O pai era um alcoólatra que bateu na mãe da jovem todos os dias da vida de casados, e muitas vezes também batia nos filhos, até que finalmente decidiu que já era o bastante e deixou-os. Infelizmente, o irmão mais novo de minha paciente assumiu a posição e tornou-se tão violento quanto o pai. Batia na mãe e, certo dia quebrou um vidro e usou a ponta quebrada para infligir um ferimento extremamente grave no braço esquerdo de minha paciente, do qual ela, dois anos depois, ainda não se recuperou totalmente, e provavelmente nunca o fará.
Aparentemente dotada por natureza de uma personalidade forte, minha paciente insistiu não só em chamar a polícia, mas em apresentar queixa contra o irmão, que tinha quatorze anos na ocasião. Os magistrados concederam-lhe a suspensão condicional da pena. A mãe de minha paciente, estarrecida com a falta de solidariedade familiar, expulsou-a de casa aos dezesseis anos, para cuidar de si mesma. Isso pôs um fim aos seus planos - formulados sob as mais inauspiciosas circunstâncias - de continuar os estudos e tornar-se advogada. (p. 180)

Minha paciente, é claro, é alvo fácil para arrombadores e ladrões. Sua casa já foi arrombada cinco vezes no último ano, e foi assaltada na rua três vezes no mesmo período, duas vezes na presença de transeuntes.
Esse tipo de pessoa não conta com a simpatia das autoridades. A polícia já lhe disse, mais de uma vez, que a culpa era ela: alguém assim não deveria viver em um local como aquele. As ruas, em outras palavras, devem estar livres para hooligans, vândalos e assaltantes exercerem seus ofícios inevitáveis em paz, sendo dever dos cidadãos evitá-los. Não faz parte do dever do Estado defender as ruas de tais pessoas. (p. 184)

A vida nos bairros pobres da Grã-Bretanha demonstra o que acontece quando a maior parte da população, bem como as autoridades, perde a fé na hierarquia de valores. O resultado é todo tipo de patologia: onde o conhecimento não é preferível à ignorância, e a alta cultura à baixa, os inteligentes e os que têm sensibilidade sofrem a perda total do significado das coisas. O inteligente se autodestrói e o que tem sensibilidade perde as esperanças e onde a decorosa sensibilidade não é alimentada, encorajada, apoiada ou protegida, abunda a brutalidade. (p. 186)

O politicamente correto penetrou tão rapidamente em nossas instituições que hoje, praticamente, ninguém tem uma ideia clara sobre raça. As instituições de Bem-Estar Social estão preocupadas com raça a ponto de isso ser uma obsessão. O antirracismo oficial deu às questões raciais uma importância cardeal que nunca tiveram antes. As agências de Bem-Estar dividem as pessoas em grupos raciais para propósitos estatísticos com uma meticulosidade que não experimentava desde a época em que vivi, brevemente, na África do Sul há um quarto de século. (p. 191)

Por mais imbuídos ou afetados pelos valores progressistas que se tornem os policiais, os progressistas nunca os aceitarão como membros plenos da raça humana ou deixarão de criticá-los, pois, no fundo, é a mera existência da polícia o que ofende a consciência progressista, e não qualquer um de seus atos particulares. (p. 239)


segunda-feira, 24 de outubro de 2016

A pré-história da mente - Uma busca das origens da arte, da religião e da ciência - Steven Mithen (2002)

As últimas duas décadas presenciaram um notável avanço no campo do comportamento e das relações evolutivas dos nossos antepassados. De fato, atualmente, muitos arqueólogos estão certos de que chegou o momento de ir além das questões sobre a aparência e o comportamento desses ancestrais e começar a fazer perguntas sobre o que se passava nas suas mentes. É o tempo da "arqueologia cognitiva". A necessidade de tal avanço é particularmente evidente ao considerarmos o padrão de expansão do cérebro ao longo da evolução humana e sua relação - ou ausência de uma - com mudanças do comportamento anterior. Fica claro que não existe uma relação simples entre volume do cérebro, "inteligência" e comportamento. (p. 20)

Um dos argumentos da nova psicologia evolutiva é que a noção da mente como mecanismo de aprendizado geral, como se fosse um tipo de computador poderoso, é incorreta. Ela constitui o pensamento dominante dentro das ciências sociais, assim como também a visão (de "bom sonso"). Segundo os psicólogos evolutivos, essa noção deveria ser substituída por outra que define a mente como uma série de "domínios cognitivos", ou "inteligências", ou "módulos" especializados, cada qual dedicado a algum tipo específico de comportamento - como os módulos para a aquisição da linguagem, ou das habilidades de utilizar ferramentas, ou de interagir socialmente. (p. 23)

Assim como a de outras crianças, a mente de Nicholas parecia uma esponja absorvendo conhecimento. Novos fatos e ideias penetrando em um arranjo infinito de poros vazios. E digo mais, jovens mentes em diferentes partes do mundo absorverão coisas diferentes. Elas estarão adquirindo culturas distintas. E as culturas, segundo nos contam os antropólogos, não são apenas listas de fatos sobre o mundo, e sim maneiras específicas de pensar e compreender: a mente-esponja é aquela que absorve os próprios processos de pensamento. (p. 57)

Uma análise do trabalho de Tom Wynn mostrou que ele não havia cometido nenhum erro ao usar as ideias de Piaget. Fabricar um machado de mão que fosse simétrico em três dimensões com certeza parecia envolver os tipos de processos mentais que Piaget alegava serem característicos da inteligência operatório-formal. Talvez as ideias de Piaget é que estivessem erradas. Esse tem sido, de fato, o recado de muitos psicólogos ao longo da última década: a mente não opera programas de utilidade geral, tampouco é uma esponja que absorve indiscriminadamente qualquer informação disponível. Os psicólogos introduziram um novo tipo de analogia: a mente é como um canivete suíço. Um canivete suíço? Sim, um desses canivetes bojudos com um monte de equipamentos úteis, como tesouras, serrinhas e pinças. Cada elemento do canivete foi projetado para solucionar um tipo de problema bem específico. (p. 61)

Resumindo, Fodor acredita que a mente possui uma arquitetura de dois níveis; o inferior é como um canivete suíço e o superior, como... Bem, não podemos descrevê-lo porque não existe nada igual a ele no mundo. (p. 63)

Gardner sugere, portanto, que a arquitetura da mente é constituída por uma série de inteligências relativamente autônomas. (p. 65)

Na medida em que esse modo de vida terminou há apenas uma fração de tempo em termos evolutivos, nossas mentes permaneceram adaptadas à caça e à coleta. Como consequência disso, C & T argumentam que a mente é um canivete suíço com um grande número de lâminas altamente especializadas; em outras palavras, é composta de módulos mentais múltiplos. Cada uma dessas lâminas/módulos foi projetada pela seleção natural para lidar com um determinado problema adaptativo enfrentado pelos caçadores-coletores durante nosso passado. (p. 68)

Uma das melhores narrativas da intrincada rede social dos chimpanzés é de autoria de Franz de Waal (1982), que descreveu maravilhosamente suas observações sobre a política desses animais enquanto estudava uma colônia do Zoológico de Burger, em Arhem. Ele nos presenteia com uma história de ambição, manipulação social, privilégios sexuais e tomadas de poder que deixariam sem graça qualquer aspirante a político - e foi tudo realizado por chimpanzés (maquiavélicos). Por exemplo, De Waal descreve a guerra pelo poder entre dois machos mais velhos, Yeroen e Luit, que durou dois meses. Começa com Yeronen como o macho dominante e continua por uma série de encontros agressivos, blefes e gestos de reconciliação de Yeroen. Para conseguir isso, Luit diligentemente conquistou o apoio das fêmeas do grupo, que no início aprovavam Yeroen. Luit ignorava as fêmeas na presença de Yeroen, mas lhes dava muita atenção e brincava com seus filhotes quando esse macho não estava por perto. E antes do grooming de cada fêmea, como que tentando obter seu apoio. O sucesso final de Luit resultou da aliança com outro macho, Nikkie. Durante os conflitos com Yeroen, Luit dependia de Nikkie para espantar as fêmeas partidárias do seu adversário. Nikkie, por sua vez, tinha muito a ganhar com isso. Ele começou ocupando uma posição social muito baixa no grupo, sendo ignorado pela fêmeas, mas quando Luit chegou a líder, passou ao segundo cargo de comando na hierarquia, acima das fêmeas e de Yeroen. Tão logo se tornou vitorioso, as atitudes sociais de Luit mudaram: em vez de ser a fonte de conflitos, transformou-se em campeão da paz e da estabilidade. Sempre que as fêmeas brigavam ele punha um fim nas contendas, sem tomar partido, e batia em qualquer uma que continuasse discordando. Em outras ocasiões, Luit impedia um conflito escalonado dentro do grupo ao apoiar o participante mais fraco. Punha Nikkie para correr, por exemplo, quando ele atacava Amber, uma das fêmeas. Depois de alguns meses como o macho dominante, Luit perdeu sua posição para Nikkie. E isso somente foi possível quando Nikkie formou uma poderosa aliança com ninguém menos que Yeroen. (p. 130)

Os humanos arcaicos, no entanto, não habitavam várias regiões do Velho Mundo nem chegaram até a Austrália ou as Américas. Clive Gamble (1993), uma das maiores autoridades em comportamento dos humanos arcaicos, reavaliou há pouco tempo a evidência da colonização global e concluiu que eles eram incapazes de lidar com ambientes muito secos e muito frios. Esses parecem ter sido desafios excessivos, mesmo possuindo-se uma inteligência naturalista bem desenvolvida e a capacidade de produzir instrumentos como machados de mão. Ainda nãos e sabe ao certo de que maneiras os humanos arcaicos exploraram esses ambientes diversos. (p. 198)

Uma inteligência naturalista bem desenvolvida parece ter sido essencial aos estilos de vida dos humanos arcaicos, pelo que se infere dos registros arqueológicos. (p. 204)

Podemos afirmar com segurança que, apesar de diferenças linguísticas, todos os humanos arcaicos partilhavam a mesma mente básica: uma mentalidade do tipo canivete suíço. Possuíam inteligências múltiplas, cada qual dedicada a um domínio comportamental específico, e havia pouca interação entre elas. Podemos realmente imaginar a mente humana arcaica como uma catedral abrigando várias capelas isoladas, dentro das quais se realizavam serviços de pensamento únicos, que mal podiam ser ouvidos em outro lugar do edifício. (p. 225)

Também podemos imaginar os pensamentos e o conhecimento das capelas técnicas e naturalista filtrando-se através das paredes das capelas social e linguística e invadindo seus espaços de forma surda, abafada. Tendo chegado lá, passaram a ser utilizados pela inteligência linguística durante as emissões de elocuções. (p. 307)

Uma grande parte da atividade mental provavelmente mantém-se fora do nosso alcance, dentro de nossa mente inconsciente. Artesões, por exemplo, com frequência parecem não estar conscientes do conhecimento técnico e perícia que utilizam. Se alguém lhes pergunta como se faz um vaso de argila no torno, muitas vezes eles têm dificuldades em dar explicações, a não ser por meio de uma demonstração prática. As ações com certeza falam mais alto que as palavras quando o conhecimento técnico está "aprisionado" dentro de um domínio cognitivo especializado. Isso enfatiza a importância do ensino verbal de uma técnica, que somente começou no início do Paleolítico, na França, ou Trollesgave, na Dinamarca (cf. Pigeot, 1990; Fischer, 1990). (p. 312)

Os indivíduos capazes de explorar pedacinhos de conversação não social encontravam-se numa posição de vantagem seletiva, na medida em que podiam integrar o conhecimento antes "aprisionado" dentro das inteligências especializadas. (p. 314)

O antropólogo social Chris Knight e seus colaboradores argumentaram que as fêmeas dos primeiros humanos modernos resolveram o problema das crescentes demandas energéticas dos cérebros de seus bebês explorando "níveis até então desconhecidos do investimento eenergético dos machos" (Knight et al., 1995). Esses pesquisadores sugerem que o comportamento das fêmeas forçou os machos a fornecer-lhes alimentos de alta qualidade, obtidos pela caça. Um importante subterfúgio feminino nesse contexto teria sido a "greve de sexo" e o uso do ocre vermelho para "simular menstruação". (p. 315)

Assim como a ascendência arborícola dos australopitecinos possibilitou a evolução do bipedalismo, a própria bipedia tornou possível a evolução de uma capacidade aumentada de vocalização entre os primeiros Homo, particularmente em H. erectus. Leslie Aiello (1996a, b) deixa isso muito claro. Ela explicou como a postura em pé da bipedia causou um rebaixamento da laringe, cuja posição na garganta torna-se mais baixa que a encontrada nos grandes símios. Maior capacidade de produzir sons de vogais e consoantes foi um subproduto e não causa da nova posição da laringe. Além disso, mudanças na respiração, associadas à bipedia, deve ter melhorado a qualidade dos sons. O aumento no consumo de carne também gerou um importante subproduto linguístico, porque o tamanho dos dentes pôde diminuir graças à maior facilidade de mastigar carne e gordura em vez de grandes quantidades de material vegetal seco. Essa redução alterou a geometria das mandíbulas, possibilitando o desenvolvimento de músculos para o controle de movimentos finos da língua dentro da boca, necessários para a agama diversificada de sons de alta qualidade exigidos pela linguagem. (p. 337)