Existe, às vezes, senão sempre, uma distância entre a moral proposta e a moral vivida, entre a realidade e o ideal. (p. 13)
A ética é, então, "a ciência do bem e do mal", ou a "ciência da moral". Ou, ainda, se limita ao estudo dos fundamentos da moral. (p. 14)
Ainda que seja uma expressão feliz , ética biomédica não deixa de ser ligeiramente ambígua. Se ela subentende a ética própria aos médicos, ela se limita a uma ética profissional específica no sentido tradicional. Se, pelo contrário, a expressão indica antes a ética própria ao domínio da saúde, então ela se amplia e retoma a perspectiva da palavra "bioética", correspondendo a uma aproximação global das questões éticas atuais no mundo da saúde e do bem-estar. (p. 16)
Apesar de certas aparências, a ética médica não está desvinculada das religiões. Basta lembrar que o juramento de Hipócrates se assentava no respeito aos deuses. E a maior parte dos autores e dos professores de ética médica, até recentemente, e sobretudo na América do Norte, eram teólogos. (p. 17)
A palavra "bioética" foi escolhida, entre outras razões, porque ela estava menos ligada a uma abordagem religiosa que a palavra "moral".
A abordagem religiosa não quer dizer que os crentes não têm direito a opinião, nem que devam ter crises espirituais, nem tão puco que os postulados ideológicos de outros cidadãos devam ser postos entre parêntesis, mas esta abordagem exige que os primeiros não coloquem suas crenças na frente, que não argumentem a partir de sua fé. O diálogo se situa no plano racional e humano. (p. 19)
Antigamente a experiência era tida como sabedoria. A moral era frequentemente vista como a repetição do passado, simples observação de regras tradicionais. A aceleração do progresso biomédico transformou o mundo. Nesse sentido, a bioética considera as respostas tradicionais inadequadas. Ela quer novos patamares da discussão e da reflexão, a fim de encontrar soluções adequadas à situação atual e até permissíveis para o futuro. (p. 20)
Em primeiro lugar pode-se ver a bioética como uma parte da ética, a parte da ética que é relativa aos problemas colocados pelo progresso das ciências biomédicas, problemas novos ou nova consideração de antigos problemas. (p. 22)
A bioética é a pesquisa ética aplicada às questões colocadas pelo progresso biomédico. (p. 22)
A bioética é o estudo interdisciplinar do conjunto das condições exigidas por uma administração responsável da vida humana (ou da pessoa humana), tendo em vista os progressos rápidos e complexos do saber e das tecnologias biomédicas. (p. 22)
Estes temas formam uma espécie de núcleo central:
- eutanásia, obstinação terapêutica, recuperação, verdade aos doentes, direito à morte;
- aborto, diagnóstico pré-natal, aconselhamento genético, eutanásia fetal;
- esterilização dos deficientes, eugenismo;
- experimentação sobre o ser humano, ainda embrião;
- inseminação artificial, fecundação artificial, banco de esperma, bebê de proveta;
- manipulação genética.
Certos autores alargam ainda mais o campo da bioética, nele incluindo outros temas:
- suicídio, estímulo ao suicídio;
- doação do coração, rim, etc.;
- transexualidade;
- concessão de verbas limitadas;
- política da saúde.
Outros, por sua vez, não hesitam em agregar assuntos dos mais diversos, sobre os quais se impõe a reflexão ética:
- a contracepção;
- o crescimento demográfico e seu controle;
- a pesquisa e o desenvolvimento dos armamentos biológicos e químicos: a guerra;
- a tortura;
- a pena de morte;
- a poluição. (p. 27)
Esta mesma reflexão bioética repousa sobre dois princípios fundamentais, reconhecidos unanimemente. Esses princípios são complementares: um se dedica ao domínio da subjetividade essencial em ética, o outro evidencia a objetividade, que também é absolutamente necessária. Esses princípios são:
- o respeito à visa;
- o respeito à autodeterminação da pessoa. (p. 31)
Essa mesma pessoa humana não é uma coisa, nem um objeto para o qual se determina um comportamento, mas é livre para assumir o seu destino. (p. 33)
O princípio do respeito da autonomia se opera de maneira diferente quando se trata de um adulto consciente, capaz de decisão, ou, ao contrário, de uma criança ou de um doente incapacitado. (p. 34)
O direito toma um valor ético quando proclama: "A pessoa humana é inviolável. Ninguém pode invadir outra pessoa sem seu consentimento" (Código Civil de Québec, artigo 19). (p. 34)
Existem situações em que o médico tem boas razões de julgar que uma informação completa sobre os riscos possíveis traumatizará seu paciente. Compreende-se que o dever de informação se atenue neste caso, sem, entretanto, desaparecer completamente. (p. 35)
Ante um menor, a maior parte das legislações atribuem a decisão aos pais ou aos tutores. (p. 36)
Com uma pessoa em estado de coma pode-se perguntar se ela exprimiu, anteriormente, sua vontade de maneira explícita. (p. 36)
Na realidade, se se deseja aprofundar a questão, é necessário reconhecer que o princípio da inviolabilidade da pessoa, sob os olhos dos juristas, admite duas interpretações, "por um lado, pode significar que ninguém pode ser submetido a um tratamento, sem o consentimento prévio, o que significa simplesmente aplicar o princípio da autonomia", do qual se afirma que é necessário, mas insuficiente. "Por outro lado, pode-se interpretar como uma aplicação do princípio da conservação da vida, mesmo porque se trata de preservar a integridade física da pessoa contra atos que a prejudiquem, sejam esses atos movidos por um ou outro interesse" (Somervile). (p. 37)
O princípio do respeito pela vida repousa principalmente sobre a proibição de matar. (p. 38)
É necessário sempre realizar todos os esforços para proteger a vida, mesmo quando ela se fragiliza. (p. 38)
Joseph Fletcher afirma que o princípio do caráter sagrado da visa é falso e que ele deveria ser redefinido por uma moral baseada na qualidade da vida. "Eu acredito que as necessidades têm prioridade sobre os direitos, escreveu ele: tal é a minha posição no que concerne à moral. Então, para ser sincero e prudente sobre o assunto, eu não afirmo que a vida e a morte sejam um direito; eu me interesso essencialmente pela necessidade do homem de viver e de morrer." (p. 39)
Em certos casos, poder-se-ia, então, concluir, que a melhor decisão - levando-se em conta o estado do doente, de seu sofrimento e das previsões - fosse de cessar ou de não mais tentar um tratamento de urgência, que na realidade faria apenas prolongar uma agonia ou esticar uma vida biológica. (p. 43)
O preceito "não matarás" foi o primeiro. Ele vem do início dos tempos. Em sua origem, a proibição de matar, pelo menos no mundo médio-oriental, referia-se apenas a cidadãos, membros do clã. Exigência da sobrevivência desse mesmo clã. Os bárbaros, os estrangeiros, não gozavam desse direito, salvo o direito de hospitalidade. (p. 44)
Um texto do Evangelho nos parece misterioso: "se teu olho ou tua mão são, para ti, motivo de pecado, corta-os". O homem pode se mutilar para esperar um bem, ainda que um bem eterno? (p. 47)
Este princípio foi formulado também pelo papa Pio XII: "A parte existe para o todo, por consequência, o bem da parte fica subordinado ao bem do conjunto; o todo é determinante da parte e dela pode dispor conforme seu interesse". (p. 47)
O bom efeito decorre imediatamente do ato praticado, e não do mau efeito; por exemplo, a saúde da mãe decorre diretamente da extração do útero canceroso, e não da morte do feto. (p. 48)
Em função da quantidade dos riscos que correr haverá sempre uma razão para se cometer um ato proporcional a estes mesmos riscos. É necessário, então, que o motivo de se praticar a ação seja mais sério que o mau efeito, ainda que ele seja grave, imediato e certo. (p. 48)
Um dos mais velhos princípios de ética médica é aquele de não agredir o paciente e não provocar nele sofrimento: Primum non nocere. (p. 49)
Ele lembra a atenção pessoal, empatia, o suporte psicológico e fraternal. (p. 50)
Num contexto de recurso limitados, o princípio afirma que, para escolher os sujeitos que terão acesso a tratamentos, não pesarão critérios sociais, raciais ou religiosos. (p. 52)
"A partir de quando houve a vida? Será que o embrião é uma vida?". Eis aí uma primeira fonte de confusão. Na realidade existe a vida antes da formação do embrião ou da fecundação: existe a vida nos gametas, há vida em cada célula. É necessário, então, redefinir a vida humana e de maneira mais explícita. (p. 59)
Do ponto de vista genético, a procriação é um processo evolutivo, contínuo, desde o encontro dos gametas, a fecundação, a primeira divisão celular, até a formação dos órgãos e a constituição do indivíduo em seu sentido completo. (p. 60)
Em uma perspectiva um pouco diferente, certos psicólogos e filósofos se fundamentam sobre a importância do relativismo da crença das pessoas, pretendem que o feto se torne humano a partir do momento em que ele seja autônomo, reconhecido e aceito como tal por seus pais ou pela sociedade.
Os partidários da humanização divergente não rejeitam geralmente a concepção de que um processo de humanização esteja sempre em curso. Mas eles recusam-se a dar a este ser, nos primeiros estágios do seu desenvolvimento, o pleno estatuto de pessoa e os direitos que lhe são conferidos.
Diante da impossibilidade de resolver de pronto filosoficamente e levando em conta o processo de humanização, iniciado desde a fecundação, certos autores, como aqueles que pertencem ao "Comitê Consultivo Nacional de Ética", na França, propõem uma terceira alternativa: reconhecer o embrião ou o feto como "pessoa humana em potência". (p. 61)
Quando termina a vida?
No plano médico, dois critérios clínicos oficiais até recentemente eram simples: parada de respiração (como denunciava o espelho diante da boca) e parada cardíaca (a prova da auscultação). (...) Na metade dos anos 60, eles centraram suas atenções no cérebro. (p. 62)
Com efeito, exprime-se como se a morte fosse um ato instantâneo, esquecendo que ela é verdadeiramente um processo. (p. 64)
A palavra pessoa vem do latim persona e significa máscara, papel (em uma peça de teatro), função. (p. 65)
Em um artigo de 1972, o moralista Joseph Fletcher propôs quinze critérios ou indicadores de "pessoa": inteligência mínima, consciência de si, domínio de si mesmo, sentimento do tempo, noção de futuro, percepção do passado, aptidão para se comunicar com os outros, interesse pelos outros, comunicação, domínio de sua existência, curiosidade, desenvolvimento e variabilidade, equilíbrio entre a razão e os sentimentos, a idiossincrasia e a função neocortical. Em uma segunda vez, em 1974, Fletcher fez um relatório de críticas obtidas a seu artigo e reduziu seus critérios a quatro: a consciência de si, a capacidade de interação, a felicidade e a função neocortical. (p. 67)
Em seu livro, A Irresistível Vontade de Nascer, René Frydman descreve o estado de inquietação provocado por uma certa evolução da medicina. Pretende-se passar, diz ele, do desejo da medicina para uma medicina do desejo. (p. 75)
A vontade pelo poder pode, assim, desvirtuar o legítimo desejo de conhecer. Esta vontade de poder pode inutilizar as etapas da pesquisa, gerar informações erradas, deturpar as finalidades, contrariar as regras deontológicas, as regras da sabedoria que a humanidade construiu progressivamente. (p. 77)
Este desejo de controle (direito de vigiar) faz-se mais insistente, à medida que o público é alertado por certos grandes escândalos recentes. Escândalos nazistas; também escândalos com os honestos pesquisadores dos Estados Unidos etc. Exemplos: injeção de células cancerosas em pacientes idosos (Brooklin); inoculação de hepatite virótica em crianças deficientes mentais (Willowbrook); ausência de tratamento para negros portadores de sífilis (Tuskegee). (p. 79)
Que diferença existe entre a ética e o Direito? Que relação existe entre o "legal" e o "moral"? E, como consequência, de maneira mais concreta: é necessário considerar ilegal tudo o que é imoral? (p. 80)
Ainda que o direito não endosse tal atitude, a ética reconhece aos subalternos o direito da dissidência, fundado no respeito pela pessoa. (p. 84)
A fé ou a ideologia de um sempre influencia o juízo pessoal e a atitude tomada. (p. 85)
Os debates de ortodoxia religiosas são questões internas das Igrejas, mas, o direito de cada cidadão, crente ou não, de participar do debate público e de ser escutado é inalienável. Nenhuma pessoa deveria ser desqualificada por causa da fé, nem da sua ideologia. (p. 88)
Os Estados Unidos têm sido, de maneira incontestável, os pioneiros no ensino da Bioética. (p. 97)
Além das "Jornadas Nacionais", convém lembrar a fala do presidente François Mitterand, quando declarou com grande felicidade: "Mais depressa gira o mundo, mais intensa é a vontade de adquirir novos poderes, por isso devemos saber que é tempo de refletir nas consequências desta contingência".
Para ser eficaz, a preocupação ética deve estar presente ao longo da pesquisa, e não se contentar em intervir depois da descoberta, como se julgasse sua moralidade, ausente do processo. Seria muito tarde, de qualquer maneira, como assinala M. Renè Habachi, diretor do Departamento de Filosofia da UNESCO, em fevereiro de 1976: "Muito tarde, porque os diversos poderes políticos e econômicos já teriam se apoderado dos resultados científicos. Os poderes políticos jogam nesses resultados boa parte do seu prestígio, e os poderes econômicos neles investem grandes capitais. Muito tarde porque os tecnólogos estariam empenhados em fabricar instalações irreversíveis. Muito tarde, também, porque os meios de comunicação de massa, sempre à procura do novo e do sensacional, já difundiram na opinião pública a sedução promissora de receitas práticas e de produtos abertos ao consumo". (p. 100)
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